segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Baixo Parnaíba: Símbolo de Luta



São João dos Pilões. Este povoado do município de Brejo, região do Baixo Parnaíba maranhense, por muito tempo, viveu uma vida pachorrenta no que diz respeito a mudanças e novidades. Os moradores se sentam à frente de suas casas como seus pais e seus avós faziam. Fulano ou sicrano chega para um dedo de prosa e a conversa rende altas gaitadas. Um povoado pequeno, com poucas casas, com um só comércio, uma escola municipal, duas casinhas cobertas de palha onde se vendem os pilões; todo mundo se conhece de trás para frente, se trata por tu, de oferecer uma cadeira, um café, um copo com água e de convidar para entrar em sua casa só porque você é parente de uma amiga de anos anteriores - quase irmãs, morei na casa dos pais dela em Brejo, rememora a dona da casa.  Nele, como em qualquer outro povoado ou município do Baixo Parnaíba, segue-se uma existência quase desapercebida e que não quer se aperceber de nada. Tanto é verdade isso, que a tomada de conscientização por parte dos trabalhadores rurais do potencial do Cerrado faz pouco tempo. As áreas de chapada lhes eram indiferentes. Eles ignoravam até que ponto e o que estas áreas podiam ou não produzir.  Inquietavam-se por ter terras de chapada. Poucos se prestavam a colher bacuri no chão ou do galho de árvore. Ninguém fazia questão de terra de chapada.  Ninguém queria bacuri.
São João dos Pilões. A entrada dos gaúchos e a ocupação do Cerrado; Brejo, Anapurus e Buriti, municípios onde o Cerrado é mais robusto; Anapurus, de cima a baixo, os galpões dos gaúchos sendo erguidos. Para os nativos, o termo gaúcho designa todo e qualquer estrangeiro aloirado, com a tez albina e que desembarca incorporando pequenas propriedades para plantar soja e outros monocultivos - as terras de chapada compradas a preço de um quilo de carne. É possível que um hectare tenha valido tão pouco comparado com o agora em que vale R$800,00? Quem olha os imensos plantios de soja prevê que contados três a cinco anos de cultivo intensivo naquele tipo de terra arenosa os recursos naturais estarão esgotados.
Na verdade, os antigos proprietários não dominavam as terras de chapadas nem do ponto de vista técnico, nem do ponto de vista legal. Poucos tinham documentos. Então, era razoável vender as propriedades para se verem livres de algo que lhes empurrava para baixo, por assim dizer. Zé Alves, Manoel Agenor, Antônio Alvena, Raimundo Lindoso e Tomé Vieira, este repassando uma herança de 408 hectares,  todos foram donos de terras na região de Brejo, no povoado de Sta. Tereza, as quais referiram vender, passar ao primeiro que chega, do que tocar a boiada para frente. Muitos venderam; poucos são guardados na memória deste povo do Baixo Parnaíba que demora a  conjugar seus nomes. Montaram quitandas, açougues e etc com o dinheiro das vendas. 
Os seus lugares no topo da hierarquia rural foram ocupados por "gaúchos" como Cid, representante da fazenda Regene e do grupo Condor, que produzem soja. Ele tem a deferência de tomar uísque com o juiz de Brejo e chama os trabalhadores rurais de preguiçosos. Em contraposição, os nativos não têm a menor dúvida que o calor imenso e a diminuição das chuvas são frutos do "desenvolvimento" que os "gaúchos" dizem que trazem. São João dos Pilões. Quase não há mais viva alma de vegetação do Cerrado. A dona da casa, por enquanto, recebe a madeira, em que esculpi os pilões, das fazendas da região que desmatam. Ë para não se estragar os troncos arrancados do chão pela prática do correntão. Ela apontou ao longe, por detrás do povoado, e pronunciou que só aquela área ainda não se desmatara.
Será que ela pensava no após, quando não houvesse mais Cerrado? Esculpir a partir de quê? Começou cedo o movimento de pessoas em São João dos Pilões. Quase sem luz, devido à madrugada, para distinguir quem quer que fosse, ouvia-se as pessoas conversando e rindo a plenos pulmões no campo de futebol do povoado. Chegando mais perto pôde se verificar que era um grupo de  trabalhadores rurais que acabara de acordar ou, talvez, nem tivessem dormido, a fim de se aprontar para a marcha em defesa do Baixo Parnaíba. Este grupo provinha de um lugar chamado Araioses, localidade que não enfrentava problemas do tipo soja, mas que vieram em solidariedade para com os companheiros de Brejo e para com os companheiros de outros municípios do Baixo Parnaíba.
Alteando o sol, outras caravanas se somariam ao movimento. A organização da marcha ficara por conta do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Brejo, Pastorais Sociais da Diocese de Brejo, Cáritas Regional, Sociedade dos Direitos Humanos, CPT, Fórum Carajás, Fetaema, Fetraf e Gabinetes dos deputados Teresinha Fernandes e Domingos Dutra. Eles decidiram que a marcha sairia de São João dos Pilões com destino à cidade de Brejo, longos vinte e dois quilômetros, tendo dos dois lados da pista campos de soja. Durante a marcha enterrariam o agronegócio, pois além da soja, as populações tradicionais do Baixo Parnaíba apoquentam-se com o eucalipto, o arroz, o bambu, turismo predatório, a cana-de-açúcar, as carvoarias, etc.
Coisa pouco dita: a maior parte da população do Baixo Parnaíba é  afro-descendente e esse fato pôde ser aferido durante o transcurso da marcha. A proporção era de um branco para três negros e todos vindos de áreas de assentamentos estadual ou federal.  Saco das Almas, um desses assentamentos, comparece na história agrária recente de Brejo como uma das áreas mais conflitantes. Motivo: antigos proprietários revenderam as terras que o Incra desapropriara  para sojicultores. Além de ser área de assentamento, a gleba Saco das Almas é uma área remanescente de quilombos e os quilombolas querem de volta a área que foi vendida irregularmente.
Durante todo o trajeto, as quinhentas pessoas, entre trabalhadores rurais, sindicalistas, representantes de movimentos sociais e ONG`s, direção do Incra, direção do Ibama e políticos, entoavam palavras de ordem e canções ecológicas e religiosas, sendo acompanhadas de perto por policiais militares que cumpriam uma determinação do juiz de Brejo que, prontamente, ao menor sinal de alerta dos sojicultores, concedeu uma liminar no dia anterior a marcha. Resguardando os campos de soja, a presença do aparato militar contrastava com os trabalhadores rurais que carregavam seus objetos de trabalho como símbolos de luta.
Não só com a presença policial os "gaúchos" contavam. Na passagem por uma das propriedades, um mal - cheiro grassava pelos ares. Jogaram veneno, os manifestantes diziam. Um avião pulverizador fez um vôo rasante sobre a manifestação, instantes depois, num pequeno lugarejo chamado Carrapato. Neste lugarejo, de buritizeiros e de lagoas ansparentes, havia sido feito uma parada para o descanso e para limentação. Brejo estava perto. Talvez os manifestantes, os moradores dos povoados e da cidade e os gaúchos não soubessem ou não relacionassem com o que estava acontecendo, mas, no século XIX, Brejo presenciara um outro ato de rebeldia contra a miséria e contra a insensibilidade das classes detentoras do poder.  Foi a Balaiada. Contudo, diferente desta revolta, a marcha não usou de violência e sim de métodos pacíficos como a elaboração de uma carta intitulada "O Baixo Parnaíba exige direitos".
Mayron Régis, maio de 2005

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