quarta-feira, 10 de abril de 2024
nao nos despreze
"não nos despreze", esse pedido inédito de Vicente de Paulo o afligiu. Como assim, desprezar ele e a família? Ainda mais naquele momento de perda da sua esposa e das constantes ameaças de perder a terra por conta das pressões exercidas pela família Introvini. "Não nos despreze" fazia sentido no contexto geral em que a família de Vicente de Paulo sempre viveu distante do povoado Carrancas sobre a Chapada e sempre contou com poucos amigos que pudessem chamar em horas dificultosas. "Não nos despreze" quer dizer "não nos esqueça". Por que não esqueceriam ? Por que não desprezaram? Tantos esqueceram e desprezaram. Quem esquece e despreza não quer saber do outro e de seus problemas. Mais fácil passar ao largo. O fórum Carajás tem por objetivo prestar assessoria aos movimentos sociais e comunidades em conflito. Esquecer e desprezar não cabe nesse objetivo.
mais desmatamentos
Quanto mais desmatamentos nas chapadas do Maranhão, menos bacurizeiros a florarem e menos bacurizeiros a darem frutos. E menos imagens como essa que Chico da cohab explicitou em 2007 na Chapada entre Chapadinha e Afonso Cunha: "Aquele bacurizeiro lembra uma juba de leão porque sua vegetação de tão descaída parece uma barba e uma juba". Essa fala se deu no momento em que o agronegócio começava a entrar nesse território. O grupo João Santos tinha um projeto na região mas não foi pra frente e as famílias oligárquicas se enfraqueceram em seus projetos impraticáveis. Essas áreas de Chapadinha e Afonso Cunha postulavam a riqueza do bacuri, riqueza ainda em voga. Por quanto tempo? As comunidades de Vila Borges Vila Chapéu Vila Januário e Buriti dos Boi persistem na coleta do bacuri ano após ano. Eles desceram na chapada de Buriti dos boi para receberem polpa de bacuri e quiabo. Andaram pelo quintal da família do Gilmar, liderança da comunidade. Prezava a pronúncia de Buriti dos Boi mesmo incorreta porque soava estranho numa sociedade que o normal é desmatar e ameaçar comunidades. Tantas e tantas vezes escutara agricultores e sertanejos conversando entre si como numa conversa codificada que só eles entendiam. Não entendia nada mas agradava a sonoridade. Tipo a conversa de um dos moradores de Buriti dos Boi. Ele viu uma cobra sucuruju no meio da estrada. Saia da Vila Borges e dirigia se a Buriti dos boi. Com o sol a pino. Na parte baixa de Buriti dos boi, alardeava se uma sequência de brejos. Muito brejo. Muito peixe que a mulher de Gilmar reclamou por não terem ido provar o peixe preparado no leite de côco. Tudo bem. O problema do caminho da sucuruju era que havia um campo de soja e campo de soja e violentamente seco. Passaram da sucuruju para outras conversas, caroço de bacuri, café com pao e por aí vai. De repente, chuva, chuva e chuva. O morador de Buriti dos boi concluiu que a cobra pressentiu que vinha chuva e que ela podia rastejar na boa pela chapada.
nabokov
Vladimir Nabokov escritor russo auto exilado nos estados unidos considerava Dom Quixote de Miguel Cervantes uma obra com vários defeitos no estilo. Por mais ácida que seja sua crítica, ele também ressalta a grandeza da obra em várias passagens e uma delas e aquela em que Dom Quixote faz um discurso exaltando o quanto havia de bom em décadas passadas e que esse bom ia se perdendo paulatinamente. Em seguida, Nabokov cita uma passagem de Rei lear, uma das obras máximas de Shakespeare, que trata da velhice e da perda da razão. Será que Cervantes em sua homenagem aos romances de cavalaria e Shakespeare em seus dramas teatrais trágicos nao queriam revelar que sim o mundo deles envelhecia e como consequência trazia e traria uma série de agravantes : perda da mobilidade da força física saúde mental do ambiente saudável dos amigos da família das histórias em comum da fartura das festas dos amores e das aventuras? Um mundo envelhecia e morreria e outro surgiria em seu lugar. Cervantes e Shakespeare não podiam prever que mundo surgiria no lugar no dos seus mundos até porque esse mundo está em renovação o tempo todo muito em função das forças liberadas pela burguesia. Vê se que no caso do Maranhão um mundo vem sendo posto abaixo diariamente pelas forças políticas e económicas que detém o poder. E um mundo quase feudal mítico e religioso que não se modernizou no devido tempo e que dá lugar a um mundo capitalista ou pós capitalista capitalizado e individualista sem que as estruturas sócio económicas realmente se alterem. Em recente reunião na comunidade de jucaral município de urbano Santos tratou se da tentativa de empresários da soja de grilagem 2500 hectares pertencentes a comunidade. Para desmatar fazer carvão vegetal e plantar soja com objetivo de exportar. Raimundo presidente da associação de Jucaral fez uma colocação interessante a um dos empresários: " vocês perguntam para que queremos tanta terra sendo que somos 500 pessoas. E vocês que são apenas quatro empresários e já possuem mais de quatro mil hectares e querem mais 2500 hectares. Para que vocês querem tanta terra?".
o suporte
O papel vem a ser o grande suporte da vida humana. Ele aceita tudo. Enverga qualquer peso, principalmente o peso da história. O arroz assim como o papel e um dos pilares da vida humana. O papel recebe a tinta, o arroz recebe o feijão a carne a farinha a farofa o ovo a banana o macarrão. A soja se tornou um suporte menos por sua historicidade e mais pelos investimentos pesados feitos pelo agronegócio pelos governos e pelos cientistas. Da para pensar que a soja veio de propósito para substituir o arroz. O açaí ou a juçara, como os maranhenses preferem falar como forma de se diferenciar do resto do mundo, suportou durante décadas a visão cheio de preconceitos de ser comida de pobre e ter gosto de terra. A verdade é que historicamente os pobres consumiam grandes quantidades durante parte do ano porque não havia outra coisa para comer e com relação ao gosto de terra: fazer o que? As raízes se alicerçam na terra. O açaí ou a juçara e um almoço como costumam dizer e como o arroz gosta de companhia. A farinha seca, a farinha dagua, o peixe, a carne, o camarão, cachaça, tudo comida e bebida que os pobres produziam e guardavam para consumir no ano ou em um dia no caso da cachaça. Tem gente que pergunta como é possível misturar cachaça com açaí ou juçara. Reza a lenda que para o açaí ou juçara não tem problema quando e consumido em primeiro lugar. Ocorrendo o contrário o negócio pega. E impressionante a capacidade do açaí ou juçara aceitar ser suporte de tantas culturas diversificadas de origem natural e industrial. O açaí ou a juçara absorve o leite ninho o leite condensado a granola o amendoim sem perder o gosto. Esse é um processo híbrido em que o açaí ou a juçara atua como espécie dominante. Também e um processo econômico com impactos significativos no social. A demanda cresceu violentamente nos últimos anos puxada pelo mercado interno brasileiro e pelo mercado internacional o que elevou os preços Pode esperar que futuramente o açaí ou a juçara faltem na mesa dos mais pobres.
o centro
De tantas perguntas, aquela jamais lhe ocorrera embora ela se fizesse presente de maneira implícita em vários de seus textos. O que era o centro para ele? Durante muito tempo o centro significou estar num lugar e ser impedido de andar por seus ambientes porque não era pro seu bico. Fique na sua e fique satisfeito com o que tem. Não tinha como ter um discernimento desse fato. Esse discernimento só viria com o tempo. O tempo sempre esteve ao redor. Indescritível em sua mudez. Sentia se ligado a um tempo que não sabia dizer ou muito menos escrever o que era. Nao perturbe o tempo. Ele está de passagem pelo que sobrou do centro. Pelas ruas que se esqueceu os nomes. Pelas praças vazias que os cidadãos vêem de suas janelas. Pelos casais de mãos dadas que entram na igreja para assistirem a missa. O que era o centro, não saberia dizer e tampouco escrever.
o amigo filosofo fotografo
O amigo filosofo fotografo teve dois insights muito bons em todos anos das amizades dos dois. Saiu muito para almoçar no centro de São Luís e em um desses almoços sugeriu ao amigo que escrevesse artigos que pisassem o tema dos pratos típicos. Em todas as cidades do Maranhão, as pessoas cozinhavam um prato típico portanto havia material literário e gastronómico para um livro. A outra ideia foi a de ler vencidos e degenerados de nascimento Moraes o mulato de Aluísio Azevedo e tambores de São Luís de Josué de Montello como a trilogia da escravidão da literatura maranhense. Nenhuma das ideias foi adiante mas vira e mexe elas voltam a tona. Elas se afixaram no fundo da memória dos dois e esperam que um dia resolvam botar as mãos na massa. A ideia dos pratos típicos vem mais a sua feição pois intencionava escrever um livro com um pé na história. E o outro pé estaria na filosofia e no jornalismo. Todos os três campos de conhecimento derivam da linguagem. O ser humano não seria nada sem a linguagem. Bacuri significa fruta que cai. Esse é o nome dado pelos indígenas que circulavam pelas matas muito antes dos franceses e portugueses aportarem no litoral maranhense. Por que eles deram esse nome? Porque a polpa do bacuri tem o seu melhor sabor ao cair. Se for derrubada do pé pela ação humana, a polpa perde sabor e e capaz do bacurizeiro não botar frutos no ano seguinte. O município de santa Quitéria por muitas décadas era conhecido por Bacuri. Quase todas as chapadas se enriqueciam de bacuri. Essa noção de chapadas repletas cobertas infindáveis de bacurizeiros permaneceu por muito tempo no pensamento das pessoas de santa Quitéria mesmo as pessoas se mudando para longe onde era escasso o bacuri. Uma professora lembrou de uma viagem que fez pelas férias em sua infância e que uma das paradas fora nas cabeceiras do rio preguiças ( ou fora nas cabeceiras do rio Buriti?). Os únicos alimentos encontrados nesse povoado atendiam pelos nomes de bacuri e farinha. E que precisava quebrar a casca do fruto para ver, pegar e comer a polpa. Ainda não dava pra fazer suco pois a energia elétrica era uma quimera.
trinta anos
Trinta anos de lançamento dos discos/CD da lama ao caos de Chico Science e Nação zumbi e samba esquema noise do mundo livre, o primeiro pela sony music e o segundo pela banguela records. E possível repetir a experiência social estética e histórica que abriu espaço para uma geração de artistas e intelectuais anos mais com a mesma originalidade e mesma criatividade ? Repetir em um locus diferente? Os títulos dos discos/CDs podem dar inicio a várias respostas para essas perguntas. Normalmente, o comprador dava pouca importância aos títulos dos disco/CDs. Apenas uma fonte de informação para quando chegasse na loja saber o que perguntar. Os títulos dos discos/CDs das bandas pernambucanas querem por a prova o comportamento desse comprador. Da lama ao caos e uma referência irónica ao lema da bandeira brasileira ordem e progresso e samba esquema noise e uma homenagem ao samba esquema novo de Jorge Ben. Chico Science e Nação zumbi fazem referencia a um fato do começo da república e mundo livre faz referência a um disco lançado no começo dos anos 60. Eventos que não se restringiram aos seus determinados momentos históricos e se propagaram pelas décadas seguintes. Ordem e progresso lema positivista vira lama e caos lema do mangue beat. Samba esquema novo de Jorge Ben aposta numa visão inovadora do samba principal gênero musical brasileiro com influências do jazz rock jovem guarda bossa nova. Fred 04 lider do mundo livre não acredita muito numa visão inovadora. O samba dos anos 60 assume outra personalidade nos anos 80 mais pagodeira mais classe média. O esquema assumiu conotações de crime nos anos 80 e noise pode ser a barulheira do rock como pode ser a barulheira dos tiros na favela. Chico Science e Nação zumbi e mundo livre relem a história do Brasil com os olhos voltados para a lama de Recife como também com os olhos voltados para os discursos que dominaram o cenário estético e artístico por décadas.
por que ler os classicos
Por que ler os clássicos, livro do escritor italiano Italo Calvino, foi uma das primeiras grandes leituras que fizera na sua vida de leitor nos anos 90. Italo Calvino pergunta no plural porque há vários clássicos na história da literatura universal. Um leitor brasileiro deve achar um exagero a forma como Calvino se pronúncia porque no máximo leu um clássico a vida toda. Um romance de Machado de Assis como o que quase todos leram no segundo grau. O que dava a entender que um livro clássico era um livro com muitos anos de existência. Sobre livros clássicos acabara de ver "Um homem sem qualidades" do austríaco Robert Musil do começo do século XX. Não diria que e um clássico no sentido deletério que essa palavra assumiu o de ser incontestável. Machado de Assis acabou assumindo esse sentido. O de ser incontestável. Ser clássico significa assumir sentidos imprevistos. Muitas pessoas ficaram em Machado de Assis e lá ficaram falando mal do que e clássico. Leram pouco e o resultado foi que seu vocabulário ficou limitado e um vocabulário limitado tolhe o pensamento. Quem quer viver com seu pensamento tolhido a vida toda? Por que ler os clássicos de Calvino a sua maneira oferecia saídas para a sinuca de bico em que o pensamento intelectual da sua cidade havia se metido. Lia se pouco e quem quisesse ler mais leria o que numa cidade tão pouco afeita a leitura e a produção textual? E numa cidade vista como clássica e histórica. Mas clássica e histórica em que sentido ? Por que ler os clássicos de Calvino respondia a esse questionamento de maneira bem singela e prosaica. Melhor procurar outros sentidos para essa cidade que se diz clássica e histórica mas que e iletrada.
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