Foto: Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental
Ontem me enviaram, para publicar, uma
Nota da presidência SBPC sobre a reunião programada para o dia 22, em
Alcântara, sob os auspícios e benesses da chamada Agência Espacial
Brasileira e do chamado Centro de Lançamento de Alcântara. Na
Programação montada para a reunião e até ontem, a SBPC parecia ignorar a
existência de quilombolas em Alcântara. Mais: parecia desconhecer a
existência de um verdadeiro etnocídio em curso contra eles.
Claro que a Nota busca “arrumar a casa”,
fazendo juras de compromisso para com quilombolas e comunidades
tradicionais. Mas aí seria bom se, para começar, a atual direção da SBPC
lesse pelo menos algum texto menor de seu associado Alfredo Wagner, uma
vez que, ao afirma defender os “direitos territoriais das comunidades
tradicionais”, ela extingue dezenas, as afirmar serem elas
“constituídas, nacionalmente, por indígenas, quilombolas pescadores,
extrativistas, artesãos e pequenos agricultores”. Gente: cadê o resto? A
SBPC matou?
Fora isso, falta à carta algo
fundamental: sentido de compromisso político. E nisso ela é também de
uma infelicidade ímpar. Começa se declarando uma “entidades sem fins
lucrativos”, “sem cor partidária e (coisa que é repetida mais de uma vez
ao longo do texto), “voltada para a defesa do avanço científico e
tecnológico”. Qual o problema?
Simples: quando acabei de ler, minha
vontade foi responder à carta perguntando onde estava a SBPC e quem
usava agora seu nome!? Porque na minha imaginação a SBPC era ainda uma
parceira das lutas pelos direitos humanos e pela democracia. Não sabia
que ela tinha sido extinta (como a maior parte dos povos tradicionais?) e
substituída por outra – “neutra”, asséptica, higienizada, preocupada em
se mostrar acima do bem e do mal e repetindo, como se tivesse que
convencer a algum eventual patrocinador, “voltada para a defesa do
avanço científico e tecnológico, e do desenvolvimento social,
educacional e cultural do Brasil”.
E aí me angustiou saber, por outro lado,
que guardava entre as minhas “pendências” um e-mail recebido cerca de
uma semana atrás, numa das listas que integro, que não usara primeiro
por não estar acompanhando o assunto em questão e não dispor de tempo,
nesses últimos dias, para buscar mais informações. Segundo porque, na
medida em que se tratava de questão extremamente grave, não usaria a
informação sem pedir a devida autorização.
Acontece que a presidenta da SBPC
resolveu ontem a primeira parte do meu problema. E hoje um companheiro
de lista cuidou do resto da questão, indagando se o material poderia ser
divulgado. Como a resposta é positiva, Aí vai ele, para minha
satisfação e alívio mostrando que ainda há compromisso com os povos
originários e tradicionais na Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência. E denunciando, ao mesmo tempo, sérias questões com relação aos
quilombolas de Alcântara.
O material consiste de duas mensagens,
escritas por duas respeitáveis associadas da SBPC e enviadas à
presidência da entidade e seus conselheiros, questionando o triste papel
que ela estava prestes a desempenhar (ou estava já desempenhando), em
relação aos quilombolas de Alcântara. Como está escrito já na introdução aos dois documentos, eles estão sendo “novamente
ameaçados de perderem toda a faixa litorânea de seu território e de
serem confinados no interior do município”. E já não sabem em quem podem
confiar como parceiros.
Dada
essa explicação, aí vão as mensagens, apenas com o cuidado de
identificar suas autoras, que honram, ambas, o passado da SBPC (que
espero não tenha ainda de todo morrido).
1. Mensagem de Célia Pires Costa, conselheira da SBPC para a região Norte, dirigida à presidente da SBPC:
“Prezada Helena,
Sobre os acontecimentos de Alcântara,
devo dizer que a SBPC – Regional do Maranhão, embora conhecendo a minha
posição de Conselheira da SBPC da Região Norte, me excluiu completamente
da reunião que aconteceu em Alcântara, da qual só tomei conhecimento na
reunião do Conselho da SPBC, que ocorreu em São Paulo, na sede da
sociedade, no mês de fevereiro, oportunidade em que manifestei a minha
indignação. Posteriormente, recebi da SBPC – Nacional cópia de
documento, da autoria de Luís – Secretário Regional do Maranhão e de
Oliveira, documento esse que, em minha opinião, carece de legitimidade,
pois não foi discutido pelos sócios da SBPC no Maranhão e muito menos
aprovado em nenhuma instância. Com relação a essa próxima reunião em
Alcântara, também fui excluída.
Entendo que a minha exclusão se deu
exatamente porque a posição da SBPC – Regional do Maranhão tem sido
dúbia, pois, claramente identificada com os interesses do Governo
Federal, tenta se dizer do lado dos quilombolas. Isso é fatal, a
população não é burra. Ela sabe distinguir perfeitamente quem está do
seu lado. Esse projeto do CLA de Alcântara, independentemente de sua
importância estratégica, não passa de uma intervenção feita pelos
militares, pois, excludente desde a sua concepção, ignorou que no
território de Alcântara viviam em paz, em suas comunidades tradicionais,
milhares de trabalhadoras e de trabalhadores.
A SBPC tem entre seus conselheiros
Alfredo Wagner e, entre seus sócios, Maristela de Paula Andrade,
pesquisadores que têm dedicado uma vida a essa causa das comunidades
tradicionais de Alcântara, especialmente as comunidades quilombolas,
conhecem toda a problemática e, portanto têm de ser ouvidos.
Por todas essas razões, entendo que essa
reunião da SBPC, programada para Alcântara para o próximo dia 22, não
deveria se realizar. Existe por parte dos movimentos sociais de
Alcântara uma clima de desconfiança das boas intenções da SBPC. Melhor
seria cancelar ou adiar essa atividade, até que os papéis se tornem
suficientemente claros, de modo a não comprometer irremediavelmente a
história da SBPC. Sugiro também que a SBPC se pronuncie por meio de uma
nota clara e inequívoca sobre as suas reais intenções.
Abraços,
Célia Pires
———–
2. Mensagem de Maristela de Paula Andrade, sócia da SBPC e especialista exatamente na questão quilombola de Alcântara:
“Colegas,
Tenho conversado longamente, tanto por
telefone quanto por email, com os Prof. Ennio e Helena, e também com
Edna, sobre os últimos acontecimentos envolvendo a SBPC regional e a
nacional.
Tentei deixar claro o significado da
visita de integrantes da secretaria regional e da diretoria nacional a
Santa Maria, povoado quilombola de Alcântara, fazendo-se acompanhar do
presidente da AEB, do Coronel da Base, de mais quatro militares
(conforme nota distribuída pela SMDH e outras entidades), além do
prefeito de Alcântara e do nosso Magnífico Reitor. Para além do conteúdo
das falas, para além das intenções, conforme tentou explicar seu
Leonardo dos Anjos (morador de Brito), do MABE, naquele momento, é
impossível aos quilombolas esquecer os 30 anos de transgressões aos seus
direitos e a tragédia social provocada pelos militares desde os anos
?80.
O fato de diretores da SBPC usarem os
veículos de transporte da Aeronáutica, se hospedarem e se alimentarem
dentro do CLA, para além das atividades “puramente científicas, de saúde
e de educação” propostas, tudo isto, com certeza é lido como
alinhamento e aparelhamento da entidade pelos militares. De
fato, é assim que eu mesma interpreto não apenas essa visita, como o
propósito de repetir o equívoco na próxima atividade da SBPC proposta
para o município e envolvendo os quilombolas, porém com o apoio dos
militares e talvez com a presença dos entes federais envolvidos na
chamada “ conciliação” no âmbito da CCAF.
Sabemos que a Câmara de Conciliação e
Arbitragem da Administração Federal propôs esvaziar o litoral da
presença humana, estabelecendo ” corredores” a “todos os quilombolas de
Alcântara”, que deverão ser cadastrados para utilizá-los, repetindo a
velha prática dos crachás imposta pelos militares (vigente até hoje)
para os quilombolas circularem por suas áreas de cultivo, de pesca e de
extrativismo.
Os entes federais que chamaram a
questão à referida Câmara foram o Ministério da Defesa, o Ministério de
Ciência e Tecnologia, o Gabinete de Segurança Institucional, a Agência
Espacial Brasileira, e aqueles outros, como Incra e SEPPIR que,
supostamente, deveriam defender os interesses dos quilombolas, também
aventaram a possibilidade de novos deslocamentos compulsórios, o que
representa um atraso de mais de dez anos nas negociações entre o
movimento quilombola e o governo federal e vai de encontro ao acordo
judicial realizado na Justiça Federal, em São Luís, assinado por esses
mesmos entes.
Também não podemos esquecer que o Brasil responde junto à OEA e à OIT, pelas transgressões aos direitos dos quilombolas.
Acabamos de redigir uma informação
técnica, a pedido da Procuradoria da República no Maranhão, na qual
apontamos o agravamento do processo de etnocídio, de morte social desses
grupos, de verdadeira limpeza étnica dessas áreas, já em curso desde os
anos 80. Procuramos de mostrar como as decisões da CCAF foram tomadas
totalmente à margem de qualquer consideração técnica – de parte de
antropólogos, arqueólogos, geógrafos, biólogos, para citar apenas
alguns.
Por tudo isto, como sócia da entidade,
como pesquisadora em Alcântara, vejo com extrema preocupação a
realização dessa visita da SBPC a Santa Maria, a notícia postada pela
SBPC regional no site da UFMA e a proposta de manutenção de atividades
da nossa entidade, para a realização da qual se pretende utilizar, uma
vez mais, o apoio dos militares.
Desculpem a redação um tanto apressada, mas estamos tendo que nos pronunciar no calor e no tempo dos acontecimentos.
Abraço a todo@s.
Maristela de Paula Andrade”.