“Apesar de pequenos agricultores produzirem quase a
metade dos alimentos no mundo, eles constituem a população mais
fragilizada, em situação de miséria e fome, cuja ausência de
titularidade ou posse da terra os torna mais vulneráveis”, constata a
socióloga.
Confira a entrevista. A
compra de terras por empresas estrangeiras está aumentando em “países
cuja governança sobre a terra é frágil, as negociações são pouco
transparentes e, em muitos casos, sem consulta prévia às populações
envolvidas ou potencialmente atingidas pelos empreendimentos”, informa
Maíra Martins, pesquisadora da ActionAid Brasil à
IHU On-Line. Segundo ela, os dados do relatório “
Situação da Terra”,
realizado pela ONG, indicam que, diante da crise econômica
internacional, “a garantia do direito à terra, acesso aos territórios e
meios de vida das comunidades e populações pobres no meio rural é
crucial para o combate à fome e para a redução das desigualdades no
mundo”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail,
Maíra
esclarece que a aquisição das terras aumentou após a crise econômica de
2007 e 2008. “No contexto da crise financeira e econômica, muitos
investidores voltaram-se para o
mercado de terras. A chamada ‘corrida por terras’ se deve também à demanda por biocombustíveis e matérias primas, com destaque para algumas
commodities
como milho, soja, cana-de-açúcar, dendê e florestas plantadas
(eucalipto), cultivos estes voltados para exportação”. E acrescenta:
“Estima-se que as transações com terras, cuja média era de 4 milhões de
hectares por ano até 2008, saltaram para 45 milhões de hectares somente
entre outubro de 2008 e agosto de 2009, sendo grande parte dessas
negociações, em torno de 75%, no continente africano”.
O processo de
estrangeirização
das terras brasileiras ocorre desde os anos 1970, mas a partir de 2008,
“também houve a intensificação da participação de estrangeiros em
investimentos agropecuários, bem como na aquisição de terras no Brasil,
acompanhando a tendência global”, informa. De acordo com a pesquisadora
da
ActionAid, o continente Africano é o principal alvo
de interesse das empresas. “Em 2010, o Banco Mundial estimou que cerca
de 46 milhões de hectares de terra agricultáveis haviam sido negociados
no continente. Grande parte dessas aquisições ocorre em países com altos
índices de fome e pobreza, cuja legislação e governança sobre a terra
são frágeis, bem como os meios para proteger os direitos das populações
afetadas”.
Maíra Martins é assessora de pesquisa
e políticas da ActionAid Brasil, socióloga e mestre em Ciências Sociais
com foco em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade pela Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro
– UFRRJ.
Confira a entrevista.IHU On-Line –
Quais são os dados mais preocupantes do relatório “Situação da Terra” em
relação à compra de terras tradicionais por empresas estrangeiras e a
crise alimentar?
Maíra Martins –
O relatório trata do problema das aquisições de terra em larga escala
em países em desenvolvimento. Dividido em duas partes, na primeira
apresenta os impactos da corrida por terras para as comunidades rurais
e, em especial, para as mulheres. Na segunda parte analisa a situação de
24 países no que concerne a sua situação fundiária e sua capacidade
(política, legal e jurídica) para proteger os direitos territoriais das
populações e comunidades, cujo meio de vida depende da terra e dos
recursos naturais.
Chama atenção para o fato de que grande parte
dos investimentos em compras de terras tem se dado em países cuja
governança sobre a terra é frágil, as negociações são pouco
transparentes e, em muitos casos, sem consulta prévia às populações
envolvidas ou potencialmente atingidas pelos empreendimentos.
Apesar
de pequenos agricultores produzirem quase a metade dos alimentos no
mundo, eles constituem a população mais fragilizada, em situação de
miséria e fome, cuja ausência de titularidade ou posse da terra os torna
mais vulneráveis. No caso das mulheres a situação é mais grave: embora
tenham papel crucial na agricultura e reprodução dos modos de vida,
possuem apenas 2% de toda a terra globalmente. Assim, no contexto de
crise dos preços dos alimentos e fome no mundo, a mensagem central do
relatório é de que a garantia do direito à terra, acesso aos territórios
e meios de vida das comunidades e populações pobres no meio rural é
crucial para o combate à fome e para a redução das desigualdades no
mundo.
IHU On-Line – Desde quando está em curso a estrangeirização de terras no Brasil e nos demais países da África e da Ásia?
Maíra Martins
– Após a crise dos preços dos alimentos em 2007-2008, identifica-se o
aumento expressivo da aquisição de terras em larga escala. No contexto
da crise financeira e econômica, muitos investidores se voltaram para o
mercado de terras. A chamada “corrida por terras” se deve também à
demanda por biocombustíveis e matérias primas, com destaque para algumas
commodities como milho, soja, cana-de-açúcar, dendê e florestas
plantadas (eucalipto), cultivos estes voltados para exportação.
Estima-se que as transações com terras, cuja média era de 4 milhões de
hectares por ano até 2008, saltaram para 45 milhões de hectares somente
entre outubro de 2008 e agosto de 2009, sendo grande parte dessas
negociações, em torno de 75%, no continente africano.
No caso do
Brasil, o processo de estrangeirização das terras não é necessariamente
novo: a cooperação nipo-brasileira para o desenvolvimento da
agricultura nos Cerrados,
na década de 1970, é considerada um importante marco desse processo por
pesquisadores. Contudo, tem sido verificado que, a partir de 2008,
também houve a intensificação da participação de estrangeiros em
investimentos agropecuários, bem como na aquisição de terras no Brasil,
acompanhando a tendência global.
IHU On-Line – Entre os
países da América Latina, África e Ásia, é possível apontar em qual dos
continentes há maior disputa pelos territórios e onde as empresas
estrangeiras mais compram terras? Quais os interesses das empresas
nesses países?
Maíra Martins – O
continente africano tem sido o principal alvo dos interesses das empresas em aquisições e terras. Em 2010, o
Banco mundial
estimou que cerca de 46 milhões de hectares de terra agricultáveis
haviam sido negociados no continente. Grande parte dessas aquisições
ocorre em países com altos índices de fome e pobreza, cuja legislação e
governança sobre a terra são frágeis, bem como os meios para proteger os
direitos das populações afetadas. As empresas, por outro lado, buscam
boas oportunidades de investimento, nesse sentido, encontram facilidades
para compra de terras ou contratos de arrendamento, incentivos fiscais,
preços de terra mais baratos, bem como populações fragilizadas por não
possuírem garantias legais.
IHU On-Line – Que empresas participam desse comércio de terras? Quais as implicações dessas negociações?
Maíra Martins –
Diversos setores participam das negociações por terras, desde fundos de
investimento e especuladores – cujo interesse é a valorização da terra,
como empresas nacionais e multinacionais de produção de etanol,
eucalipto, milho, soja – até setores da
mineração e outras indústrias extrativas.
IHU On-Line – O que muda em relação à produção agrícola uma vez que as empresas estrangeiras são donas dos territórios?
Maíra Martins
– Territórios que antes eram habitados ou produzidos por uma
comunidade, bem como seus recursos naturais (água, solo, fauna, etc.),
são monopolizados nas mãos de poucos, geralmente convertidos em regiões
de
monocultivos
para exportação, com alto uso de agrotóxicos, intenso consumo dos
recursos hídricos e poluição do ar ou do subsolo. Dependendo do setor,
emprega-se pouca mão de obra, não contribuindo muito para o
desenvolvimento local.
IHU On-Line – Qual o posicionamento dos governos desses países em relação à compra de terras nacionais?
Maíra Martins –
Para muitos governos a entrada de investimentos estrangeiros no país é
tida como oportunidade de geração de renda e emprego para as
comunidades, além de ser uma oportunidade de transferência de
tecnologia. Sabemos que não é esse processo que tem sido noticiado e
denunciado por muitas organizações ao redor do mundo. Nesse sentido, há
discussões em âmbito internacional e em muitos países sobre maneiras de
fortalecer os mecanismos de governança sobre a terra e regular os
investimentos das empresas, cobrando mais responsabilidades dos
investidores estrangeiros. Mais de cem países do
Comitê Global de Segurança Alimentar
endossaram as diretrizes globais voluntárias sobre a gestão responsável
da posse da terra e os direitos de acesso à terra, à pesca e aos
recursos florestais. No entanto, por serem voluntárias, é necessário que
os países adaptem aos seus contextos nacionais e incorporem os
princípios e recomendações em formato de legislação.
IHU
On-Line – Qual a situação específica do Brasil? É possível estimar que
percentual do território brasileiro já pertencente a empresas
estrangeiras?
Maíra Martins – O Brasil possui uma
estrutura fundiária extremamente concentrada, resultado de nosso
processo histórico, da maneira como a terra tornou-se propriedade
privada e também reserva de valor. Como demonstra os dados do último
censo agropecuário, as pequenas propriedades rurais, com menos de dez
hectares, ocupam apenas 2,7% da área total dos estabelecimentos rurais,
algo torno de 7,8 milhões de hectares, um terço do que, por exemplo, é
hoje ocupado somente com a soja. Ao mesmo tempo em que assistimos a
expansão das fronteiras agrícolas para as monoculturas de exportação,
com forte investimento estrangeiro, os processos de reforma agrária, de
demarcação de
territórios indígenas e quilombolas estão quase parados.
Há
também fragilidades nos cadastros dos imóveis, revelando o fraco
controle do estado sobre a governança da propriedade da terra no Brasil.
Isso afeta uma identificação precisa das aquisições de terras por
estrangeiros. Dos 850 milhões de hectares em terras no Brasil, apenas a
metade está cadastrada como imóvel rural no sistema nacional de cadastro
rural do
Incra. Desse modo, é difícil definir percentuais sobre o território. Segundo estudos do
Nead, baseado nas fontes do
Sistema Nacional de Cadastro Rural – SNCR do
Incra,
em 2008 existiam 34.632 registros de imóveis em mãos de estrangeiros,
equivalente a uma área total de 4 milhões de hectares, parte
significativa desses imóveis classificados como grandes propriedades
rurais.
IHU On-Line – O comércio de terras em larga
escala tem estimulado o aumento do preço dos alimentos e a produção dos
biocombustíveis. Quais as razões dessas consequências?
Maíra Martins
– O interesse por terra para atender à demanda por commodities
agrícolas ou para especulação tem provocado o aumento do preço da terra e
a substituição de cultivos essenciais para
segurança alimentar
por produtos voltados para exportação. Esse processo reforça a
tendência para concentração fundiária e monopólio, contribui para o
encarecimento dos preços dos alimentos devido ao aumento dos custos de
produção (preço da terra, distância e transporte etc.) e redução de
oferta de alimentos.
IHU On-Line – Como esse comércio tem
prejudicado as comunidades tradicionais e pequenos agricultores em todo
o mundo? Quais os riscos de acirrar ainda mais a crise alimentar?
Maíra Martins
– A pressão sobre as terras tem provocado o deslocamento de muitas
comunidades – às vezes por processos violentos e conflituosos –
inviabilizando seus modos de vida e formas de reprodução de sua cultura.
Por não terem a propriedade ou
posse da terra,
as populações rurais mais pobres são facilmente deslocadas e
expropriadas e, para aqueles que possuem a titulação, a pressão
inflacionária do preço da terra e a chegada de investimento ao redor
inviabilizam a permanência em suas terras, levando-os à venda ou
arrendamento. Por exemplo, podemos imaginar uma família de pequenos
agricultores que estão cercados por fazendas de cana de açúcar, com
intenso uso de agrotóxicos, ocorrências de queimadas, e assoreamento dos
rios, frequentemente assediadas para vender ou arrendar suas terras.
Muitos são os riscos para a
crise alimentar.
Esse processo recente de aquisições de terras vai na contramão do que
se considera necessário para garantir a produção de alimentos, reduzir
os impactos das crises dos preços e inflação. Essa busca por terras
contribui para agravar a concentração de terra, renda e investimentos em
alguns setores, sobretudo na distribuição, pressionando os preços e
contribuindo para inflação.
Como dito acima, os agricultores
familiares são aqueles que produzem grande parte dos alimentos
consumidos no mundo. É preciso políticas que fortaleçam pequenos
agricultores, comunidades tradicionais, dando-lhes acesso à terra e
meios de produzir alimentos e reproduzir seus modos de vida com
dignidade.