Nas terras de areia uma entre tantas Marias semeia saberes a quase um
século.
Regilma de Santana *
“Essa
velha aqui tem sangue de negro, tem sangue de caboco,
de
índio... E tem disposição”.
Foto
I: Feira Agroecológica de Rosário – D. Roxa
(foto:
Regilma de Santana – A.A Tijupá)
Como
disse o poeta, compositor maranhense João do Vale “a
ciência da abelha, da aranha e a minha, muita gente desconhece”,
o poeta como sábio que é percebe que nessas terras de areia existe
muito a ser contado, recontado e descoberto. Assim, ouvindo ao poeta
e convivendo com elas, as “Marias” é que nos propomos como
instrumento para contar, escrever suas memórias, para que muitos
possam conhecer e reconhecer essas valorosas mulheres das bandas de
cá.
A
protagonista dessa história é Maria Almerinda Veloso, 93 anos
(nascida em 21 de março de 1921), no povoado de Santa Izabel
município de Pres. Juscelino, na região Munin - MA. A região do
Munin está localizada ao norte do estado do Maranhão, próximo a
Capital São Luiz (cerca de 200 km). Esta mulher carrega muitas
mulheres em uma só. Negra de corpo franzino, traços fortes, mãos e
pés grossos, pequena em estatura, gigante em sabedoria e estórias.
Tem vigor e disposição para vida que atribui à vontade de viver e
fazer sempre mais coisas, não se cansa, não se entrega. Filha de
gente humilde, negros do norte do Maranhão - as terras de areia.
Ainda criança veio para o povoado Pai João uma comunidade onde
viviam lavradores e pescadores, essa comunidade tradicional há dez
anos tornou-se Projeto de Assentamento São João do Rosário,
localizado no município de Rosário.
O
P.A São João do Rosário é separado em três comunidades, ao todo
são um pouco mais de 200familias de trabalhadoras e trabalhadores
rurais. D. Roxa, Veio pra cá com a família em busca de terra pra
plantar e de bom pescado pra alimentar a todos, “ah
eu não lembro o ano que a gente veio pra cá... me criei aqui, casei
duas vezes e hoje tô só eu e meus filhos” “dantes, todo mundo
era lavrador e pescador, não tinha divisão”.
Mãe de 12 filhos, avó de 24 netos e bisavó de 13 bisnetos. Uma das
coisas que mais orgulha D. Roxa é o fato de ter sido parteira. Na
comunidade é comum ouvir os pedido de benção à madrinha Roxa.
Como parteira ela carrega as rezas, os dizeres, as preces e as
técnicas desenvolvidas a partir da prática “...
também fui parteira deste os 15 anos já peguei mais de 100
crianças, pra tudo tem que ter ciência, mais tem que gostar de
fazer também”.
Pescadora
artesanal, lavradora, parteira, quebradeira de coco babaçu como a
maioria das mulheres dessa região. Dona Roxa como é carinhosamente
conhecida nas redondezas, é síntese da mulher maranhense,
campesina, trabalhadora rural, guardiã dos saberes e da cultura
daquela gente. Talvez a chamam de Roxa por sua pele morena quão cor
de jabuticaba madura, pele que ela faz questão de assumir “eu
sou negra, tá vendo minha filha”.
D. Roxa não sabe escrever bem como ela mesma diz, mal aprendeu
assinar o nome, nunca teve a oportunidade de aprender a ler e
escrever, pois logo cedo teve de trabalhar “Meu
primeiro trabalho foi na pescaria, pescando de curral, de anzol,
fazendo rede de fio de náilon... depois vim trabalhar de roça, sou
fazendeira de remédio caseiro, já levantei muita gente doente.
Trabalharei quebrando coco babaçu, depois aprendi a trabalhar com
andiroba (fazia azeite), hoje sou trabalhadora com hortas, a gente da
roça sabe fazer de quase tudo, mas escrever mesmo eu não sei”.
Para
Maria Roxa, a roça é um lugar de viver e fazer cultura, não apenas
o plantio por si só. Diz-se roça o lugar onde a trabalhadora e o
trabalhador rural vive, constrói cultura, saberes, valores. E de
Cultura popular ela entende bem, hoje coordena o bumba meu boi de São
João do Rosário e lembra “Aqui
dante tinha tambor de crioula, brincadeira de salão, o povo saia
brincando e tocando matraca. Fiz quadrilha... eu trabalho com bumba
meu boi a mais ou menos uns 20 anos”.
Na comunidade as mulheres organizam a festa junina, o festival da
Jussara, fazem parte da diretoria da associação, organizam a
igreja, os festejos, as rezas, os cultos... E D. Roxa é a mãe de
todos. Aquela dentre outras que dá conselhos e que é ouvida nas
tomadas de decisões.
A
produção agroecológica como modo de vida de D. Roxa...
“Mesmo
sem saber que era agroecologia a gente já fazia, era o nosso jeito
de viver na roça, não tinha isso de vender, era plantar pra comer,
e dar par os vizinhos, trocar, era assim”.
D. Roxa trabalhou com apicultura juntamente com outras mulheres da
comunidade “faz
um ano que eu não trabalho mais, por que não tenho mais força,
mais se as meninas for eu ainda vou, eu acho que posso ensinar o
pouco que eu aprendi”,
sustentou a família sozinha com o resultado do trabalho na roça.
“Eu aprendi muito trabalhando com esse serviço, foi um prazer pra
mim eu vim me levantar e conseguir dinheiro depois que eu comecei a
trabalhar com hortas... Nunca trabalhei usando veneno, por que nunca
foi preciso porque eu capinava mês de março e abril e o mato era
arrancado por nossa mão, não era botado veneno. De “chacho”,
quando terminava de capinar uma roça já tava comendo o milho da
outra... era assim...”. É
do quintal que ela tira maior parte dos produtos que consome e
comercializa,
“tem banana, acerola, abacate, limão, macaxeira, o que não dá
pra plantar aqui, ai planto na roça com a ajuda dos filhos e pagando
serviço, aqui a gente faz puxirão (uma forma de mutirão
comunitário para ajudar nas roças).”.
Experiente,
D. Roxa conta que com remédio caseiro trabalhou por muito tempo, e
aprendeu com o mato mesmo “ainda
hoje vem gente aqui atrás de remédio... ah tem lambedor de casca de
jatobá pra quebradura de osso, tem sumo de algodão, mastruz com ovo
de galinha da terra, burdão de velho, pau d´arco, leite de mapá,
janaúba, jatobá, azeite de carrapato, alfazema, fumo... ah tem
muito remédio que o mato oferece, a gente é que não sabe usar...
eu só não faço é benzer, isso eu não aprendi... tem muito médico
de butiquim, eu sou médica do mato, e agora tem pouco médico do
mato por aqui”.
D.
Roxa, hoje trabalha com horta produzindo alface, couve, cheiro verde,
pimentinha, maxixe, quiabo, tem uma pequena criação de galinha
também no quintal. Orgulha-se ao mostrar os canteiros no quintal e
faz plano. Conta também que para viver da e na roça tem que
perceber e conhecer a natureza, e principalmente as fases da lua “pra
tudo, pra plantar, colher, pescar, tirar remédio do mato, tem que
saber a lua certa”.
A
comercialização dos produtos agroecológicos...
“Comercializo
na comunidade e faço a doação, mais também tem a feira
Agroecológica e as entregas para o Programa Nacional de Alimentação
Escolar – PNAE”.
A
Feira agroecológica de Rosário é uma inciativa dos agricultores e
agricultoras familiares de Rosário em parceria com a Associação
Agroecológica Tijupá, já em funcionamento a mais de um ano. Ali
participam cerca de 30 a 32 agricultores e agricultoras de 12
comunidades, sendo a maioria (95%) mulheres, que comercializam o
fruto de seu trabalho na agricultura familiar de forma solidária,
dentre essas mulheres guerreiras, D. Roxa tem se destacado “eu
levo o que eu planto e o dinheiro da venda me ajuda a comprar o que
eu não tenho e pagar as contas... Levo de tudo um pouco”.
Principais
produtos comercializados Legumes e verduras:
cheiro verde, macaxeira, abobora maxixe, quiabo, pimenta de cheiro,
pimenta malagueta (in natura e molho), alface, couve, rúcula,
pimentão, pepino, vinagreira. Produtos
do agroextrativismo:
azeite de andiroba, azeite de babaçu, leite de mapá, tucupi,
corante de urucum. Frutas:
limão, maracujá, mamão, manga, banana, caju, bacuri, buriti, cana
de açúcar, cajá, coco, murici, melão, melancia. Polpa
de frutas:
acerola, bacuri, cajá, cupuaçu, goiaba, buriti, manga, murici. Aves
vivas:
galinha caipira, pato. Comida
caseira pronta:
arroz, galinha caipira no leite de babaçu, bolo de tapioca, bolo de
macaxeira, café pronto, leite, bolo de massa puba na palha de
banana. Artesanato.
Outros:
ervas medicinais, xaropes, mel, milho verde, feijão verde, farinha
seca e farinha de puba, massa puba, arroz torrado, plantas
ornamentais, sabão de andiroba.
A
Feira também é um espaço de troca de saberes e experiências.
“quando
eles veem comprar aqui na nossa feira, eles acabam conhecendo coisas
que não sabiam e nós também vamos aprendendo, por exemplo: a gente
traz ervas, cascas pra vender, e temos que ensinar como preparar,
como tomar”
e continua “a
feira é bem organizada, a gente faz reunião antes de ir, discute o
preço dos produtos, faz reunião lá no final da feira, tem um
fundo, um dinheirinho que a gente deixa com a comissão para comprar
barraca, mesa, essas coisas para o grupo”“ mais também não é
fácil, não. Nós não temos local certo, nem transporte, faltam
barracas, mais mesas, bancos. A gente sai de casa bem cedo pra poder
pegar um lugar pra montar as barracas, o pessoal da Tijupá é quem
ajuda nessa parte, mais vamos começar a cobrar da prefeitura algumas
coisas” diz
D. Roxa entusiasmada e com ar de preocupação ao falar da Feira
Agroecológica.
O
Mercado Institucional como são chamados às políticas de
comercialização para a agricultura familiar, principalmente PAA e o
PNAE, se configuram hoje como instrumentos em disputa na região,
pois assim como na maioria do território nacional a burocracia para
acessar e a falta de informação sobre o funcionamento, legislação
e, sobretudo a falta de assessoria técnica social e produtiva
dificultam o acesso e ou desmotivam a continuação. No município de
Rosário o PNAE está em seu segundo ano de execução, no ano de
2013 foram em média 65 fornecedores no total, no ano de 2014 esse
número triplicou. D. Roxa e o grupo de mulheres de São João do
Rosário são exemplos de que para PNAE se efetivar, carece ser
desburocratizado, assumido pelo poder público e monitoramento pela
sociedade civil. Esse monitoramento em partes tem sido feito pelas
mulheres do P.A São João do Rosário e de outros três Projetos de
Assentamento na região.
“Nunca
usei veneno no plantio, por que não precisa, a terra dá tudo que a
planta precisa”.
Outras
Marias das terras de areia...
As
memórias de D. Roxa são memórias das mulheres que lutam
cotidianamente para conquistar espaços, seja de produção,
comercialização e organização sociais. Quando jovem provavelmente
não imaginava que defenderia conceitos para ela complexos como
agroecologia, políticas públicas, e recusaria a outros como
agrotóxicos, monocultura, mas desde muito jovem sabia de que lado
estava, e que não estava ali por escolha, mas por uma condição
social imposta “ninguém
quer ser pobre, todo mundo quer viver bem, mais não depende do nosso
querer”.
Olhando
a história escrita aqui, nos parece comum que haja muitas Marias
nesse Brasil adentro, mas o que nos provoca há contar um pouco sobre
Maria Roxa é o fato de, aos 93anos continuar firme na luta pela
efetivação de políticas públicas para as mulheres do campo, e em
defesa da agroecologia como modo de vida. Os quase um século de vida
de Maria Roxa não podem ser contatos em poucas páginas, mais
merecem ser registrados juntamente com a história de tantas outras
mulheres, Margaridas
dos sertões, dos cerrados, dos cocais, dos mangues, dos lençóis do
Maranhão.
Flaviana
Silva Boa Vida, 60 anos, nascida em 05 outubro de 1953, no povoado
Santa Rosa município de Axixá - MA. Mãe de 11 filhos, avó de 17
netos. Mudou-se para o povoado Pai João em 1983, onde hoje é o P.A
São João do Rosário. Flavica como gosta de ser chamada, é filha
de pescadores, lavradores, uma entre tantas outras Marias do Maranhão
“Criei
meus filhos já morando aqui, e foi aqui que eu e a Roxa nos
conhecemos”, “A primeira atividade da gente, umas 20 mulheres foi
à produção de mel, sem recuso sem nada, ganhamos material... a
gente trabalhava sem ajuda de técnico e ia perdendo por que não
sabia como fazer, depois foi que começamos a aprender e melhorar
vendemos bastante mel. Depois começamos a trabalhar com horta”,
“hoje nós fazemos parte do grupo de mulheres que fornece pro PNAE,
e temos a feira agroecológica também, isso é importante, porque
antes a produção se perdia.” “a minha história aqui no
assentamento é igual à de Maria Roxa, a gente corre junto pra
conseguir as coisas, agora nossas filhas tão junto no grupo de
mulheres que é a filha da Roxa, a Lucinha e a minha filha a Maria
José, elas é que vão continuar essa luta por nós”, “outra
luta nossa aqui no Assentamento é a luta pelas melhorias na
comunidade, formamos comissão vamos ao INCRA, na prefeitura onde for
preciso pra reivindicar melhorias nas estradas, segurança e saúde”.
Para
essas mulheres lutadoras o desafio comum hoje é organizar melhor as
mulheres para a produção e comercialização, nas entrevistas foi comum
ouvir que “avançamos e melhoramos muito, mais precisamos sempre ir além, melhorar, cobrar mais. Para isso é preciso organização.
Foto: Flaviana S. Boavida (foto de Regilma de Santana)
D.
Roxa, D. Flavica, assim como para D. Mucuruna, Lucinha, Luzia, Anas,
Dagmar, Lucidalva, Domingas, Alice, Lourdes, Magnólia, Marias, fazem
parte da história do fazer agroecológico no Maranhão. Elas se
encontram quando sistematizamos informações sobre as lutas,
história, conquistas e desafios da vida do campo e da vida das
trabalhadoras e dos trabalhadores rurais, são nomes desconhecidos e
histórias comuns, elas se identificam nas histórias dos sujeitos
sociais coletivos no campo, nas cidades. A elas e a tantas outras,
nosso reconhecimento em vida pelas lutas e resistências enfrentadas
cotidianamente, e nosso agradecimento pelos ensinamentos que
possibilitarão a novas Marias ir além em nossas lutas de militante
feminista.
“foi
um prazer conversar sobre minha vida com vocês”
D.
Roxa
“estamos
na luta, enquanto tivermos força vamos fazendo e convocando mais
gente”
D.
Flavica
* Regilma de Santana é Bacharel em Administração e compõe a equipe técnica da Tijupá