ISA – A Confederação da Agricultura e
Pecuária do Brasil (CNA) acaba de divulgar os resultados de uma pesquisa
encomendada ao Datafolha sobre povos indígenas. Disponível para
consulta na internet (acesse aqui),
o levantamento foi feito com um universo de 1.222 entrevistas em 32
aldeias com mais de 100 habitantes, abrangendo 20 etnias, que falam
português. Com base somente nisso pretende apresentar um perfil dos
indígenas no Brasil.
A divulgação da pesquisa, cujas
entrevistas foram realizadas entre 7 de junho e 11 de julho passados,
foi feita exatamente no momento em que o conflito territorial entre
índios e fazendeiros no Mato Grosso do Sul ganha as páginas dos jornais e
a opinião pública.
Pouca terra ou muita terra?
Entre as conclusões da pesquisa, há a
afirmação de que “a situação territorial também causa preocupação, mas
não é o maior problema, como afirmado por ONGs, movimentos sociais e
certa áreas de governo”. O argumento implícito é o de que, diante da
existência de outros desejos e necessidades, definidos a partir de um
perfil genérico dos povos indígenas, as demandas territoriais não se
justificam. Para a pesquisa, os principais problemas dos índios são
outros, como saúde e educação.
Entretanto, o próprio levantamento
aponta que a questão territorial é a segunda mais importante para os
povos indígenas, com 24% das respostas, atrás apenas da saúde (29%), mas
à frente de outros 14 temas, como alimentação, emprego ou educação.
Quando perguntada, a maioria (57%)
afirmou que o tamanho de suas terras é menor do que o necessário. No
caso da Região Sul, que tem 8,7% da população indígena nacional, mas
apenas 0,18% da área demarcada como terra indígena, esse percentual
chega a 92%. Na Região Norte, que abriga 38,2% da população e 81% da
área, 44% considera o tamanho menor do que o necessário.
A Amazônia Legal concentra 98,4% dos
112,8 milhões de hectares de todas as terras indígenas e 42% da
população indígena total de todo o País, de mais de 896 mil pessoas. Ou
seja, 58% da população indígena espalhada pelo resto do Brasil dispõe de
um território que corresponde só a 1,6% da área total de terras
indígenas.
Questões de índio, respostas de branco
Os dados do Datafolha ensejaram notícias
da Folha de S. Paulo e da revista Veja, cujo teor repete que os índios
brasileiros estariam integrados ao modo de vida urbano e teriam
preocupação menor com a questão da terra. Isso ficaria evidente pelo
desejo de consumir bens como televisão e DVD, pela aspiração de uma
formação universitária e por uma suposta alta adesão dos indígenas
entrevistados ao Programa Bolsa Família.
Que as sociedades indígenas estejam cada
vez mais interessadas na aquisição dos chamados bens do “mundo dos
brancos”, não é uma novidade. Assim como o restante da sociedade
brasileira inserida nas classes econômicas menos privilegiadas, eles
também vêm aumentando o consumo de bens como televisão ou rádios. Mas
daí afirmar que isso é um sinal de “urbanização” e que, por isso, eles
já não precisam mais de terras para caçar, pescar e plantar vai uma
enorme distância.
O fato de haver luz elétrica em uma
aldeia e de existir televisores em algumas casas de maneira alguma
significa sinal de “urbanização”, assim como não o seria no caso de um
pequeno agricultor que vive num sítio. Pelo contrário, a própria
pesquisa indica que a maior parte dos indígenas entrevistados depende
dos recursos providos por seus territórios para sobreviver — 94% dos
entrevistados praticam agricultura nestas áreas e 85% caçam, o que é
totalmente incongruente com modos de vida urbanos.
Mesmo no caso dos Guarani Kaiowá, cujos
diminutos territórios estão ameaçados por monoculturas de cana e soja no
Mato Grosso do Sul, a reportagem da Folha destaca: 100% dos
entrevistados praticam a agricultura, 99% caçam e 51% pescam. Coerente
com esse resultado, mais de 70% dos entrevistados não exercem trabalho
remunerado. Ou seja, vivem exclusivamente do que plantam e colhem em
suas terras.
É importante notar que os números
relativos a programas governamentais assistencialistas, sobretudo os que
fornecem cestas básicas, são coerentes apenas com regiões do país onde
os indígenas têm menos e menores terras e, por isso, são mais
dependentes dessas políticas. O Nordeste e o Sul ostentam o maior número
de beneficiários de cestas básicas, 76% e 71%, respectivamente, ao
contrário do que acontece com os povos que vivem na região Norte, que
concentra a maior parte das terras demarcadas, onde apenas 7% recebe o
benefício.
Ou seja, a conclusão a que se chega é de
que, onde há terras em tamanho e condições ambientais apropriados, os
índios são menos dependentes da ajuda governamental, pois podem prover
sua própria subsistência por meio de atividades tradicionais nada
urbanas.
O antropólogo Eduardo Viveiros de
Castro, do Museu Nacional, consultado pelo ISA a respeito, propôs uma
reflexão hipotética sobre o que diriam os leitores da FSP e da Veja se
topassem com uma matéria cuja manchete dissesse: “Brasileiros estão integrados ao modo de vida norte-americano, aponta pesquisa.” Segundo
Viveiros de Castro, “a matéria explicaria que a pesquisa,
cuidadosamente preparada e aplicada, foi encomendada pelo Departamento
de Estado dos EUA, que escolheu várias famílias brasileiras de classe
média, localizadas principalmente nas cidades de São Paulo e Rio de
Janeiro (afinal, são as de maior concentração populacional), para dizer
quais são seus principais problemas. Os analistas dos resultados
concluiriam que todos os brasileiros desejam abandonar seu país e ir se
instalar em apartamentos em Miami, deixando as terras brasileiras para
serem ocupadas por grandes empresas norte-americanas, que sabem
aproveitá-las melhor do que os cidadãos nacionais. É mais ou menos isso
que fazem a FSP e a Veja.”
Problemas de metodologia
Fazer um levantamento mais geral sobre o
perfil dos povos indígenas no Brasil é uma antiga aspiração tanto de
acadêmicos como das agências governamentais. Mas foi somente em 2010 que
o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) conseguiu
levar a cabo sua mais completa iniciativa para construir um perfil
específico dessas populações. Para produzi-lo, ele contou com a
experiência de conceituados demógrafos e antropólogos e, mesmo tendo
conseguido alcançar um grau de detalhamento importante, os resultados
apresentam uma série de imprecisões e limites derivados justamente da
heterogeneidade da população indígena brasileira.
Comparando-se com o levantamento feito
pelo IBGE, ficam claros os limites do método adotado pela pesquisa do
Datafolha. Por exemplo, a distribuição da amostra não foi proporcional à
distribuição da população indígena no país. Segundo dados do Censo de
2010, a região brasileira de maior população indígena é o Norte, com
342.836 indígenas, seguida pelo Nordeste, com 232.739. Apesar disso, o
maior número de entrevistas foi feito no Centro Oeste e no Nordeste.
Outro ponto que deve ser destacado é que
foram entrevistadas pessoas de 20 etnias, quando no Brasil existem mais
de 230, de acordo com o ISA (leia aqui),
ou 305, de acordo com o IBGE. Cada uma delas é um universo cultural
distinto. Por exemplo, a amostra só contempla povos falantes de
português – em um cenário de mais de 180 línguas indígenas diferentes.
A conclusão a que se chega é que não se
pode fazer conclusões generalistas sobre os vários povos indígenas que
vivem no Brasil, muito menos se elas contrariam parte significativa dos
dados que as sustentam.
Não é novidade que alguns setores
representativos do agronegócio brasileiro, com a CNA à frente, tem como
meta principal, uma vez ganha a batalha do Código Florestal, modificar o
rito de demarcação de terras indígenas, evitando a regularização de
novas áreas. A novidade é a tentativa de colocar na boca dos índios a
afirmação de que já não precisam mais de suas terras tradicionais. Num
momento em que o país assiste a dramática luta dos Guarani pelo direito
de retomar uma pequena parte de seu território tradicional, não há como
não pensar que essa pesquisa é, na verdade, uma cortina de fumaça.
Nenhum comentário:
Postar um comentário