domingo, 18 de novembro de 2012

CNA lança cortina de fumaça sobre disputa por terras indígenas


ISA – A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) acaba de divulgar os resultados de uma pesquisa encomendada ao Datafolha sobre povos indígenas. Disponível para consulta na internet (acesse aqui), o levantamento foi feito com um universo de 1.222 entrevistas em 32 aldeias com mais de 100 habitantes, abrangendo 20 etnias, que falam português. Com base somente nisso pretende apresentar um perfil dos indígenas no Brasil.
A divulgação da pesquisa, cujas entrevistas foram realizadas entre 7 de junho e 11 de julho passados, foi feita exatamente no momento em que o conflito territorial entre índios e fazendeiros no Mato Grosso do Sul ganha as páginas dos jornais e a opinião pública.
Pouca terra ou muita terra?
Entre as conclusões da pesquisa, há a afirmação de que “a situação territorial também causa preocupação, mas não é o maior problema, como afirmado por ONGs, movimentos sociais e certa áreas de governo”. O argumento implícito é o de que, diante da existência de outros desejos e necessidades, definidos a partir de um perfil genérico dos povos indígenas, as demandas territoriais não se justificam. Para a pesquisa, os principais problemas dos índios são outros, como saúde e educação.
Entretanto, o próprio levantamento aponta que a questão territorial é a segunda mais importante para os povos indígenas, com 24% das respostas, atrás apenas da saúde (29%), mas à frente de outros 14 temas, como alimentação, emprego ou educação.
Quando perguntada, a maioria (57%) afirmou que o tamanho de suas terras é menor do que o necessário. No caso da Região Sul, que tem 8,7% da população indígena nacional, mas apenas 0,18% da área demarcada como terra indígena, esse percentual chega a 92%. Na Região Norte, que abriga 38,2% da população e 81% da área, 44% considera o tamanho menor do que o necessário.
A Amazônia Legal concentra 98,4% dos 112,8 milhões de hectares de todas as terras indígenas e 42% da população indígena total de todo o País, de mais de 896 mil pessoas. Ou seja, 58% da população indígena espalhada pelo resto do Brasil dispõe de um território que corresponde só a 1,6% da área total de terras indígenas.
Questões de índio, respostas de branco
Os dados do Datafolha ensejaram notícias da Folha de S. Paulo e da revista Veja, cujo teor repete que os índios brasileiros estariam integrados ao modo de vida urbano e teriam preocupação menor com a questão da terra. Isso ficaria evidente pelo desejo de consumir bens como televisão e DVD, pela aspiração de uma formação universitária e por uma suposta alta adesão dos indígenas entrevistados ao Programa Bolsa Família.
Que as sociedades indígenas estejam cada vez mais interessadas na aquisição dos chamados bens do “mundo dos brancos”, não é uma novidade. Assim como o restante da sociedade brasileira inserida nas classes econômicas menos privilegiadas, eles também vêm aumentando o consumo de bens como televisão ou rádios. Mas daí afirmar que isso é um sinal de “urbanização” e que, por isso, eles já não precisam mais de terras para caçar, pescar e plantar vai uma enorme distância.
O fato de haver luz elétrica em uma aldeia e de existir televisores em algumas casas de maneira alguma significa sinal de “urbanização”, assim como não o seria no caso de um pequeno agricultor que vive num sítio. Pelo contrário, a própria pesquisa indica que a maior parte dos indígenas entrevistados depende dos recursos providos por seus territórios para sobreviver — 94% dos entrevistados praticam agricultura nestas áreas e 85% caçam, o que é totalmente incongruente com modos de vida urbanos.
Mesmo no caso dos Guarani Kaiowá, cujos diminutos territórios estão ameaçados por monoculturas de cana e soja no Mato Grosso do Sul, a reportagem da Folha destaca: 100% dos entrevistados praticam a agricultura, 99% caçam e 51% pescam. Coerente com esse resultado, mais de 70% dos entrevistados não exercem trabalho remunerado. Ou seja, vivem exclusivamente do que plantam e colhem em suas terras.
É importante notar que os números relativos a programas governamentais assistencialistas, sobretudo os que fornecem cestas básicas, são coerentes apenas com regiões do país onde os indígenas têm menos e menores terras e, por isso, são mais dependentes dessas políticas. O Nordeste e o Sul ostentam o maior número de beneficiários de cestas básicas, 76% e 71%, respectivamente, ao contrário do que acontece com os povos que vivem na região Norte, que concentra a maior parte das terras demarcadas, onde apenas 7% recebe o benefício.
Ou seja, a conclusão a que se chega é de que, onde há terras em tamanho e condições ambientais apropriados, os índios são menos dependentes da ajuda governamental, pois podem prover sua própria subsistência por meio de atividades tradicionais nada urbanas.
O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional, consultado pelo ISA a respeito, propôs uma reflexão hipotética sobre o que diriam os leitores da FSP e da Veja se topassem com uma matéria cuja manchete dissesse: “Brasileiros estão integrados ao modo de vida norte-americano, aponta pesquisa.” Segundo Viveiros de Castro, “a matéria explicaria que a pesquisa, cuidadosamente preparada e aplicada, foi encomendada pelo Departamento de Estado dos EUA, que escolheu várias famílias brasileiras de classe média, localizadas principalmente nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro (afinal, são as de maior concentração populacional), para dizer quais são seus principais problemas. Os analistas dos resultados concluiriam que todos os brasileiros desejam abandonar seu país e ir se instalar em apartamentos em Miami, deixando as terras brasileiras para serem ocupadas por grandes empresas norte-americanas, que sabem aproveitá-las melhor do que os cidadãos nacionais. É mais ou menos isso que fazem a FSP e a Veja.”
Problemas de metodologia
Fazer um levantamento mais geral sobre o perfil dos povos indígenas no Brasil é uma antiga aspiração tanto de acadêmicos como das agências governamentais. Mas foi somente em 2010 que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) conseguiu levar a cabo sua mais completa iniciativa para construir um perfil específico dessas populações. Para produzi-lo, ele contou com a experiência de conceituados demógrafos e antropólogos e, mesmo tendo conseguido alcançar um grau de detalhamento importante, os resultados apresentam uma série de imprecisões e limites derivados justamente da heterogeneidade da população indígena brasileira.
Comparando-se com o levantamento feito pelo IBGE, ficam claros os limites do método adotado pela pesquisa do Datafolha. Por exemplo, a distribuição da amostra não foi proporcional à distribuição da população indígena no país. Segundo dados do Censo de 2010, a região brasileira de maior população indígena é o Norte, com 342.836 indígenas, seguida pelo Nordeste, com 232.739. Apesar disso, o maior número de entrevistas foi feito no Centro Oeste e no Nordeste.
Outro ponto que deve ser destacado é que foram entrevistadas pessoas de 20 etnias, quando no Brasil existem mais de 230, de acordo com o ISA (leia aqui), ou 305, de acordo com o IBGE. Cada uma delas é um universo cultural distinto. Por exemplo, a amostra só contempla povos falantes de português – em um cenário de mais de 180 línguas indígenas diferentes.
A conclusão a que se chega é que não se pode fazer conclusões generalistas sobre os vários povos indígenas que vivem no Brasil, muito menos se elas contrariam parte significativa dos dados que as sustentam.
Não é novidade que alguns setores representativos do agronegócio brasileiro, com a CNA à frente, tem como meta principal, uma vez ganha a batalha do Código Florestal, modificar o rito de demarcação de terras indígenas, evitando a regularização de novas áreas. A novidade é a tentativa de colocar na boca dos índios a afirmação de que já não precisam mais de suas terras tradicionais. Num momento em que o país assiste a dramática luta dos Guarani pelo direito de retomar uma pequena parte de seu território tradicional, não há como não pensar que essa pesquisa é, na verdade, uma cortina de fumaça.

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