quarta-feira, 29 de abril de 2020

obsessão pelo conhecimento




Certa vez, um amigo argumentou que não via razão em especial para que ele comprasse tantos livros. Não eram tantos livros, o comprador de livros pontuou. Os livros cabiam em uma só estante. Perdia feio para um amigo professor de português, jornalista e escritor. Ele não era professor; formou-se em jornalismo e escrevia de vez em quando artigos que teimosamente cruzavam gêneros literários como se ele estivesse em um cruzamento no centro da cidade e não soubesse para que lado o seu pensamento se destinaria. Não quis polemizar o porque de tantos livros. Descambaria para a impertinência e para a arrogância. Deixou o amigo falando sozinho. Igual a outros embates na área de politica. A polemica com o amigo, porem, ficou encostada em seu intimo pronta para retomar a primeira oportunidade. As compras de livros dos mais variados temas se intensificaram. Virou uma obsessão pelo conhecimento e pela estrutura desse mesmo conhecimento. O comprador se voltou então para a polemica de outrora com seu amigo e escreveu “ A hora de responder a velha questão chegou.”

domingo, 26 de abril de 2020

Barro Vermelho


Não se recordava a ultima vez que ligara para a casa de Francisca no povoado quilombola Barro Vermelho, município de Chapadinha. Queria ter mantido contatos mais frequentes com ela e seu irmão, Zé Orlando, vulgo Pelé. Os contatos telefônicos ou por internet sempre se mostravam insatisfatórios. Em parte, porque as conversas beiravam o monologo. Os quilombolas resistiam em conversar com pessoas de fora. Eles não viam saída em nenhum dispositivo social ou constitucional para a dura realidade que os cercava em seus territórios reconhecidos. O rio Munim oferecia uma saída mais honrosa ao monologo da exclusão social a qual os quilombolas se acostumaram por décadas (nada de estradas, nada de escolas, nada de benefícios e etc). O rio não podia ser tirado de suas vidas que pertenciam a ele. Algumas vezes, a família Leite bem que tentou lhes tirar o rio pela força e pelo dinheiro. Os Leite botaram cerca no leito do Munim para que seu gado trafegasse livremente (o rio é para o gado na opinião da familia Leite). As máquinas abriram várias crateras com o proposito de retirarem areia e seixo os quais a familia Leite venderia as empresas de material de construção em Vargem Grande e Chapadinha. Os esforços da família Leite foram infrutíferos. O rio continua lá e a cada inverno ele avança por sobre o território quilombola de Barro Vermelho que um dia a familia Leite alegou possuir. Os quilombolas não reclamam ou só reclamam para si ou entre si. Uma hora, as águas escorrerão e a área do rio se verá reduzida. O único problema é para se deslocar. Como a estrada da comunidade se encontra impraticável, e o quilombo praticamente impenetrável para os de fora, os quilombolas remam em barcos pequenos por quilômetros e ancoram em um local mais próximo da pista (numa situação de cheia os locais de ancorar os barcos são incertos).  Nesse local aguardam um transporte que os levará a Chapadinha onde farão as compras do mês e receberão seus benefícios

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Mundo Livre

Aparentemente não havia nenhum problema com aquele texto, daquele tipo que se convencionou chamar problema de um texto jornalístico. Nada que se reclamasse. O leitor vê o texto com vida própria, então o problema passa a ser do texto e não do autor que o escreveu. Esse texto, em especial, exprimia a razão principal de qualquer texto jornalístico que é a informação. Nesse caso, a informação vinha adornada com o manto da critica musical. É justo pensar em termos de critica musical ou de uma critica jornalistica do cenário musical? Isso depende de quem escreve, para que se escreve e onde se escreve. A critica musical se ocupa da obra em seu intimo. A critica jornalística se ocupa da obra sem seu intimo. O texto de Pedro Alexandre Sanches sobre o cd “Guentando a Oia” do grupo pernambucano Mundo Livre mescla um pouco das duas críticas. A primeira proclama que a obra se inscreve dentro de um espaço visto apenas pelo autor. A segunda proclama que a obra independe de um espaço determinado. O Mundo Livre lançou o “Guentando a Oia” em 1996 pela Banguela Records, a mesma gravadora do “Samba Esquema Noise”, de 1994. As datas importam mais para a critica de fundo jornalístico do que para a critica musical. A crítica de fundo jornalístico convence o leitor pelo apego às datas. O leitor lembra a data que vem impressa no jornal ou na revista. É dessa forma que ele redistribui o texto para si e para os seus próximos. A crítica musical não procura convencer o leitor de nada. O leitor contempla a critica assim como o ouvinte acolhe a música. O texto de Pedro Alexandre demonstra que o “Guentando a Oia” continua o projeto do Mundo Livre iniciado em “Samba Esquema Noise”. Quer dizer, há uma coerência. A coerência estética condiz com uma coerência temporal. Nada mudou em dois anos para o Mundo Livre e para a critica? Os dois anos entre “Samba...” e “Guentando...” se afamaram como os anos em que o conservadorismo brasileiro se renovou graças ao pacto firmado entre setores da direita e setores do centro em torno da eleição de Fernando Henrique Cardoso, candidato do PSDB a presidência da república em 1994, e da implantação do plano Real. O projeto neo-conservador gerou expectativas em boa parte da sociedade brasileira quanto a inserção da economia local na economia global. A propósito, o projeto neo-conservador se concretiza trinta anos após o golpe de 64. As expectativas geradas pelo neo conservadorismo dos anos 90 revigoraram as expectativas geradas pelo conservadorismo dos anos 50 e 60 e que com o desgaste da direita viraram motivos de chacota em setores da classe média brasileira. As pessoas perguntavam se o plano Real trataria de mudar a economia ou simplesmente ajudaria a derrotar a esquerda na eleição de 1994. Com a vitória da direita, as expectativas se diluíram em outras expectativas. O “Samba Esquema Noise” gerou expectativas quanto ao que viria depois. A critica se espantara com sua originalidade tanto musical como a sua concepção. Um cd cujo nome remetia a um disco de Jorge Bem “Samba Esquema Novo” não podia ser qualquer coisa. Depois de escutar, alguém corretamente se indagaria que tipo de musica era aquela. Assinava Samba e tocava como uma banda de punk rock. O Samba comparece no cd “Samba Esquema Noise” sem que se saiba exatamente com qual tipo de Samba o Fred 04, letrista do Mundo Livre, dialoga. O “Samba Esquema Noise” estabelece conexões com o samba de Jorge Bem em “Samba Esquema Novo” e “Tábua das Esmeraldas”, pois Fred 04 escutou muito esses discos, só que as razões históricas que propiciaram a germinação dessas obras mudaram. O surgimento de um cd chamado “Samba Esquema Noise” nos anos 90 diz muita coisa sobre a produção musical e a realidade sociopolítica dos últimos quarenta anos no Brasil. Por que o Mundo Livre cita um disco dos anos 60 em vez de citar um disco recente de Jorge Bem? O Mundo Livre ao citar um disco, na verdade, cita um estilo de música e de vida que não vivenciou. “Citar é marcar um encontro” (Walter Benjamin). A citação permite ao Mundo Livre sair do seu espaço tempo e passear por outros espaços tempos. Tratar-se-ia de um passeio nostálgico pelo samba como Marisa Monte praticou em seu disco Cor de Rosa e Carvão de 1994, no qual ela regravou “Dança da Solidão” de Paulinho da Viola e “Balança a Pema” de Jorge bem? Em seu disco, Marisa Monte imprime uma marca de continuidade na produção musical brasileira. Se Paulinho da Viola parou de gravar, o mercado pode contar com o retrô chique de Marisa Monte para cobrir essa lacuna. A opção Marisa Monte dificilmente percorreria seja o espaço tempo que um Paulinho da Viola percorrera e deixara em aberto. Alguns setores da classe média se identificaram com a opção Marisa Monte porque ela se disfarçava bem a sua falta de estofo com uma boa voz e uma boa seleção de músicas. O retrô chique de Marisa Monte cola Jorge Bem e Paulinho da Viola numa mesma perspectiva histórica e artistica. O Mundo Livre passeia por uma ideia de Samba. A sua ideia é que o Samba chegou despedaçado nos anos 80. Marisa Monte colou tão bem o Samba de Jorge com o Samba de Paulinho que todos acreditaram ver uma linha temporal passar pelos dois e que levaria a Marisa. Para o Mundo Livre uma linha temporal não passa por esse e aquele compositor ao mesmo tempo. A indústria cultural estimula que opções como Marisa Monte ou o Pagode ou o Brega ou o Sertanejo ou a Axé Music surjam mais vezes porque ele perdeu a paciência com o tempo original do Samba que levava décadas formando compositores e músicos em geral. O mercado não espera que o texto ou a música vire uma referencia e só depois daí em diante iria atrás de novos textos ou novas músicas. Daqui para frente, num mesmo individuo ou numa mesma banda, o publico escutará um samba ou um brega. Em sua resenha sobre o “Guentando a Oia”, Mundo Livre, Pedro Alexandre Sanches anui com uma visão que perpassa parte da critica na qual se confere ao Mundo Livre uma herança pop modernista. Por essa visão, o mercado é o espaço aonde o artista busca suas fontes. Só que o Mundo Livre visita o mercado e a História para embasar a sua interpretação sobre o mercado e sobre a História. E a resenha de Pedro Alexandre também concorda com essa postura do Mundo Livre ao admitir que “A Música que os Loucos Ouvem” retoma um lirismo que parecia esquecido desde que Paulinho da Viola se calara no final dos anos 80. O lirismo que Pedro se refere não é o da música pop e sim o do Samba tradicional.

Balzac e Dalton Trevisan


A literatura brasileira aprecia o rural bem mais que o urbano. A historia socioeconômica do Brasil explica esse apreço pelos temas rurais em detrimento aos temas urbanos. Seria bom, entretanto, começar com um autor que auxiliará na compreensão do rural em relação ao urbano e vice-versa. Em determinado trecho da sua novela Ferragus, Honoré de Balzac escreve assim: “Julio seguiu a mulher a uma saleta onde viu acumulados gaiolas, utensílios domésticos, fogareiros, móveis, pratinhos de barro cheios de restos de comida ou água para o cão e para os gato, um relógio de madeira, talheres, gravuras de Eisen, ferros velhos amontoados, misturados, confundidos de modo a formar um quadro grotesco...”. Certamente, nessa lista não consta nenhum item sentimental. A senhora larga as coisas pela casa não pelo sentimento e sim pela própria vacuidade que as coisas causam nela. O urbano é isso. As pessoas possuem as coisas e são possuídas por elas sem maiores justificativas morais e econômicas. Dalton Trevisan é um escritor realista, como de resto a literatura brasileira, e em seu conto Uma Vela para Dario descreve um ataque de epilepsia e a forma como as pessoas se comportam com relação ao morto. O espaço em si, onde se dá o fato, pouco importa. Dalton Trevisan empurra o epilético e a turba para um cenário que poderia ser em qualquer cidade. O cenário da bisbilhotice. As pessoas bisbilhotam o corpo, ao mesmo tempo, que o carregam de lá para cá. A descrição de Balzac comprova que o capitalismo na França superara os seus primórdios pré-industriais e dera lugar ao capitalismo financeiro. A descrição de Dalton Trevisan circunscreve seus personagens presos a patologias irreprimíveis como Aluizio de Azevedo fez em O cortiço no século anterior.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

O Baixo Parnaiba e o pastiche


“Eu não estou tão certo do destino que nos é reservado. ” Em que livro, ele lera essa frase? Tantas vezes escrevera algo que soava original, mas no final das contas verificara se tratar de pastiche intelectual. Lia muito e essa enormidade de leituras o perturbava como se percebe com relação a frase. Sentia que essas leituras trairiam seu intelecto. Difícil admitir que o intelecto podia ser traído. As frases traem não o leitor, mas sim o escritor que conclui ao fim e ao cabo que o escrito é apenas uma forma imprecisa de um texto maior. Que texto maior é esse que não aparece por completo em nossas mentes ou, se aparece por completo, ele desaparece no mesmo instante sem nenhuma explicação? Coleridge, poeta inglês dos séculos XVIII e XIX, sonhou com o maior poema de sua vida. Acordou e escreveria o poema caso não o atrapalhassem em suas múltiplas tentativas. O que sonhara não se lembrava mais. Afinal desistiu de escrever o poema. Para que escrever se não está certo que o destino de quem escreve corresponde ao destino do que é escrito? As pequenas comunidades do Baixo Parnaiba maranhense viram o melhor dos seus destinos serem apagados da memória, para darem lugar ao pastiche. A comunidade do Riachão, município de Chapadinha, viveu sua vida produtiva e social sempre dependente da família que detinha os documentos de propriedade da área onde a comunidade morava. Essa relação de dependência (poder feudal) manteve-se por décadas até a chegada da Suzano Papel e Celulose que prometia centenas de empregos na sua fábrica de pellets que construiria no município de Chapadinha. A empresa comprou a propriedade e destinou apenas alguns hectares para os antigos moradores plantarem. Caso os moradores desobedeçam e plantem além da área destinada pela empresa, eles serão processados.


sábado, 18 de abril de 2020

o que tem debaixo de tanta agua


O riacho Bacaba não coube em si. Foi repentino e inesperado, disseram os moradores das Laranjeiras. As águas barrentas da lagoa interpenetraram as águas do riacho formando um só volume. Devido as chuvas da manhã esse volume já era considerável. Raimundo ligara cedo para o primo de sua esposa. Queria que ele informasse se dava pra passar tranquilo pelo riacho Bacaba. O primo respondeu que não tinha porque ter receio. No dia anterior, ele prestigiara o riacho Bacaba duas vezes e nessas duas vezes o riacho se mantivera limitado as suas bordas características. Não obtivera informações frescas naquela manhã pois a sua morada ficava um pouco longe do riacho e, além disso, ocupara-se desde cedo dos preparativos para recepcionar o Raimundo, presidente da associação de Juçaral, e Mayron Régis, jornalista. O Raimundo era figura tarimbada nas Laranjeiras e nos Fernandes.
Pelas informações do Raimundo e pelas informações prestadas pelo primo, nada impediria a dupla de cruzar as Chapadas no fiat mille de Jeová (Deus em sua versão motorista olhava por eles) e chegar a tempo do almoço. E por certo que as coisas correram bem sobre as Chapadas. As poças de água pouco representaram perigo de atolar (não se alargaram tanto com as chuvas que cairam entre janeiro e fevereiro de 2020) ou se fosse o caso de representarem perigo de atoleiro, bastava o carro contornar a poça e foram feitos alguns contornos  quase encostando na vegetação nativa do Cerrado ou quase encostando nos plantios de eucalipto da Suzano Papel e Celulose.
A Suzano Papel e Celulose abandonou seus plantios de eucalipto ao longo das Chapadas de Chapadinha, Urbano Santos e Mata Roma. A empresa projetava plantar mais de 40 mil hectares nessas Chapadas (e outras nos municípios de Santa Quiteria, Belagua, Anapurus, São Bernardo e Santana) onde todas têm presença de comunidades quilombolas. A mais conhecida é a comunidade quilombola de Bom Sucesso, município de Mata Roma. Um desses plantios abandonados bate na área da comunidade de Santa Rosa, que faz parte do território quilombola Bom Sucesso. Você se pergunta: "Quem vigia esses eucaliptos? Quem sabe, a empresa não tenha mais interesse economico em protege-los."   
Os plantios da Suzano Papel e Celulose não impedem quem quer que seja de trafegar pelas Chapadas. A empresa não é proprietária nem dos caminhos e nem dos recursos naturais da região. O que os plantios fazem é dificultar a relação homem e natureza numa dimensão nunca vista. O Raimundo e o Mayron Régis não puderam seguir de carro até a comunidade das Laranjeiras. O volume de água presente no Riacho Bacaba indicava que, se eles arriscassem, o carro atolaria no leito do rio. Eles tiveram que descer do carro e continuar a jornada a pé. O motorista ficou dentro do carro no aguardo. Nesse trecho, o rio Preto diz a que veio. Ele não é só o rio. Ele é a lagoa da Quilharina. As águas se insurgem contra as margens que o homem pretensiosamente determinou que seriam os limites do rio. “O que tem debaixo de tanta água? ”, a pessoa se perguntaria. A resposta mais óbvia é que há muito peixe. O sogro do Raimundo é um dos que pescam nessa lagoa. "Parece fácil", a pessoa diz consigo, pois as redes estão esticadas e só se vê as partes de cima. Contudo, teria coragem suficiente a ponto de descer e mergulhar nas águas da lagoa? Sozinha, a sua mente vasculhou o que seu corpo não teve coragem. O que passou não passou, ficou depositado e com uma escadaria construída por seus pensamentos desceu ao fundo para recolher o que fosse sem temer se afogar. 
Caso a Suzano Papel e Celulose tivesse desmatado as Chapadas como pretendia em menos de dez anos como ficaria a lagoa e o rio Preto? Como se virariam as diversas comunidades que vivem da pesca e de outros recursos naturais na bacia do rio Preto?            


terça-feira, 14 de abril de 2020

o que se sabia

O que se sabia e o que não se sabia. Caira muita chuva no inverno de 2020 no nordeste maranhense. Os córregos, de uma hora para outra, enchiam-se de tal forma que chegavam devagarzinho a cobrir o que viam pela frente. As águas dos córregos viam galhos, troncos de arvores, folhas, sementes, plantios de arroz e feijão, capim, animais amarrados ou soltos, moradas simples ou casarões, pontes, estradas, bares, pessoas cavalgando, pessoas pescando, pessoas em pé perscrutando o tempo e etc.  Sob o efeito das chuvas, as águas dos córregos enxergavam o que viam pela frente como se deixassem tudo para trás. Elas cobriram as pontes que ligam povoado a povoado e município a município. O que fazer nesses casos?  O Raimundo, morador de Juçaral e presidente da associação do povoado, município de Urbano Santos, atravessava as pontes com a certeza que não despencaria no córrego ou no rio. Ou o corrego não o queria ou ele não queria o córrego. Os moradores que vivem a beira de rio ou percorrem as longas estradas que cortam os corregos e os rios nos municipios de Chapadinha, Mata Roma e Urbano Santos celebram acordos diários com a força da natureza. O rio Preto nesse cenário de muita chuva tanto transmite o esplendor dessa força como gera dúvidas quanto a sair ou não sair de casa. As casas, na zona rural do Maranhão, ainda são construídas com sapé ou adobe e palhas de babaçu para cobri-las. O Babaçu alimentou e cobriu muita gente por vários anos quando não havia o que comer. O caso de uma família do povoado Fernandes, município de Urbano Santos, é revelador do quanto se passou fome no Maranhão entre as décadas de setenta e oitenta. A família, amiga do Raimundo e parente da mulher deste, assim que chegou a região, e criou laços, quebrou coco babaçu a fim de se alimentar do mesocarpo pois não havia comida em canto algum. 

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Um mamifero de grande porte

O rapaz não reconheceu as pegadas. Saira cedo de casa com a intenção de caçar. Esquecera o cachorro que o acompanhava nessas ocasiões. A paca fora o maior animal que caçara na sua curta carreira de caçador. Completara mais de vinte anos e esses anos se restringiram ao seu povoado e aos povoados vizinhos. Parou para analisar as pegadas. Encaminhavam-se para a grota do chiqueiro ou a barroca da vaca. Para cada nome tinha uma explicação: grota do chiqueiro porque os porcos do povoado, na época do inverno, banhavam-se   ou enlameavam-se, como preferirem, e barroca da vaca porque na época do verão o gado ia lá matar a sede. Dava-se nome para cada lugar, por menor que fosse, em razão da presença humana que este lugar já teve. Desse jeito, provava-se que naquele lugar alguma pessoa caçara, criara seu gado, construira sua casa, roçara, bebera água e etc. O Raimundo, presidente da associação do Juçaral, município de urbano santos, durante uma volta pelas partes altas do seu povoado, em março de 2020, indicava as veredas pelas quais os povoados traçavam seus percursos ora para Urbano Santos ora para Chapadinha.  Os nomes de alguns povoados dedicavam especial apreço por animais. A cotia gorda, a anta gorda e a guariba gorda. Engraçado que junto com o nome do animal vem o adjetivo gorda. Os nomes dos lugares representavam anseios dos agricultores familiares e de seus familiares ou apenas representavam a constatação daquilo que existia de exuberante e inenarrável por aquelas partes irrepreensíveis em beleza? O rapaz não desistira da caça. Ele retornou a sua casa em Juçaral. Chamou o cachorro que faria companhia por toda a caçada. Eles seguiram as pegadas ate que deram de cara com um animal não muito comum em se tratando de uma área tão impactada pelos plantios de eucalipto que desmataram milhares de hectares de Cerrado. As pegadas pertenciam a uma capivara. Um mamífero de grande porte e que pouco se ouve falar. 

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Largo do desterro


Geralmente, os padres dão conselhos aos seus paroquianos. O padre Peixoto, pároco de Caxias no final do seculo XIX e personagem do livro Largo do Desterro de Josué Montello, deixa de lado os conselhos e movido pela curiosidade pergunta ao Major Taborda, personagem principal do livro e senhor de mais de 90 anos de idade: " Porque levou tanto tempo para procurar sua filha? E também a mãe de sua filha?" O padre fez essa pergunta após o major encher ele e sua cozinheira de perguntas a respeito de antigos moradores de Caxias que conhecera numa viagem que fizera 44 anos antes. Entre esses moradores que lhe interessava, estavam Zumira, sua antiga paixão, e sua filha, a qual achava que fosse filha dele.
O padre e a cozinheira respondem ou as pessoas morreram ou as pessoas enlouqueceram ou nunca tinham ouvido falar. Constatando os fatos, o major Taborda fecha o caderno onde anotara os nomes para facilitar na hora das perguntas.
O fechar do caderno e simbólico. " O major fechou devagar o caderno, devagar o recolheu...". No caderno, ele escrevera nomes e atividades ou características ligadas à cada nome. Nesse momento, isso confere existência concreta aos personagens, pois antes eles só existiam em sua memória.
A sensação que Josué Montello passa e que mais do que a viagem de barco, os exercícios de escrita e do imaginário foram uma perda de tempo ou foram em vão. E a pergunta do padre Peixoto quase ao final do capítulo acentua mais essa sensação. O padre Peixoto ao perguntar não representa um papel de fundo histórico e sim representa um personagem que foi posto por Josué Montello para executar um papel literário fundamental na narrativa: perguntar ao Major. Contudo, não nos sentimos satisfeitos porque o major não responde a pergunta. O que está por detrás da pergunta ? Como o major deveria responder? Sim ele passou décadas até retornar a Caxias e só presenciou o vazio. Acaso tivesse viajado alguns anos antes certamente ele se encontraria com amigos ainda vivos e saos. Isso significaria mais personagens e mais histórias a narrar. O major Taborda e o escritor Josué Montello confeririam um papel de destaque a cidade de Caxias na narrativa ? Para um escritor escolher São Luís como cenário de sua obra se torna fácil pois era capital da província e etc. Qual era a importância de Caxias para a província do Maranhão? Pela própria narrativa contida em Largo do Desterro a importância de Caxias era mínima para a política e a economia maranhenses. Em nenhum momento, Josué Montello explica o que o major foi fazer em Caxias na primeira metade do século XIX. Essas assertivas levam a crer que o Major não viajou antes para rever os amigos não só porque tivesse uma vida com mulher e filhos em São Luís mas também porque as duas semanas que passara em Caxias não foram suficientes para que ele escrevesse um capítulo de sua vida