quinta-feira, 23 de abril de 2020

Mundo Livre

Aparentemente não havia nenhum problema com aquele texto, daquele tipo que se convencionou chamar problema de um texto jornalístico. Nada que se reclamasse. O leitor vê o texto com vida própria, então o problema passa a ser do texto e não do autor que o escreveu. Esse texto, em especial, exprimia a razão principal de qualquer texto jornalístico que é a informação. Nesse caso, a informação vinha adornada com o manto da critica musical. É justo pensar em termos de critica musical ou de uma critica jornalistica do cenário musical? Isso depende de quem escreve, para que se escreve e onde se escreve. A critica musical se ocupa da obra em seu intimo. A critica jornalística se ocupa da obra sem seu intimo. O texto de Pedro Alexandre Sanches sobre o cd “Guentando a Oia” do grupo pernambucano Mundo Livre mescla um pouco das duas críticas. A primeira proclama que a obra se inscreve dentro de um espaço visto apenas pelo autor. A segunda proclama que a obra independe de um espaço determinado. O Mundo Livre lançou o “Guentando a Oia” em 1996 pela Banguela Records, a mesma gravadora do “Samba Esquema Noise”, de 1994. As datas importam mais para a critica de fundo jornalístico do que para a critica musical. A crítica de fundo jornalístico convence o leitor pelo apego às datas. O leitor lembra a data que vem impressa no jornal ou na revista. É dessa forma que ele redistribui o texto para si e para os seus próximos. A crítica musical não procura convencer o leitor de nada. O leitor contempla a critica assim como o ouvinte acolhe a música. O texto de Pedro Alexandre demonstra que o “Guentando a Oia” continua o projeto do Mundo Livre iniciado em “Samba Esquema Noise”. Quer dizer, há uma coerência. A coerência estética condiz com uma coerência temporal. Nada mudou em dois anos para o Mundo Livre e para a critica? Os dois anos entre “Samba...” e “Guentando...” se afamaram como os anos em que o conservadorismo brasileiro se renovou graças ao pacto firmado entre setores da direita e setores do centro em torno da eleição de Fernando Henrique Cardoso, candidato do PSDB a presidência da república em 1994, e da implantação do plano Real. O projeto neo-conservador gerou expectativas em boa parte da sociedade brasileira quanto a inserção da economia local na economia global. A propósito, o projeto neo-conservador se concretiza trinta anos após o golpe de 64. As expectativas geradas pelo neo conservadorismo dos anos 90 revigoraram as expectativas geradas pelo conservadorismo dos anos 50 e 60 e que com o desgaste da direita viraram motivos de chacota em setores da classe média brasileira. As pessoas perguntavam se o plano Real trataria de mudar a economia ou simplesmente ajudaria a derrotar a esquerda na eleição de 1994. Com a vitória da direita, as expectativas se diluíram em outras expectativas. O “Samba Esquema Noise” gerou expectativas quanto ao que viria depois. A critica se espantara com sua originalidade tanto musical como a sua concepção. Um cd cujo nome remetia a um disco de Jorge Bem “Samba Esquema Novo” não podia ser qualquer coisa. Depois de escutar, alguém corretamente se indagaria que tipo de musica era aquela. Assinava Samba e tocava como uma banda de punk rock. O Samba comparece no cd “Samba Esquema Noise” sem que se saiba exatamente com qual tipo de Samba o Fred 04, letrista do Mundo Livre, dialoga. O “Samba Esquema Noise” estabelece conexões com o samba de Jorge Bem em “Samba Esquema Novo” e “Tábua das Esmeraldas”, pois Fred 04 escutou muito esses discos, só que as razões históricas que propiciaram a germinação dessas obras mudaram. O surgimento de um cd chamado “Samba Esquema Noise” nos anos 90 diz muita coisa sobre a produção musical e a realidade sociopolítica dos últimos quarenta anos no Brasil. Por que o Mundo Livre cita um disco dos anos 60 em vez de citar um disco recente de Jorge Bem? O Mundo Livre ao citar um disco, na verdade, cita um estilo de música e de vida que não vivenciou. “Citar é marcar um encontro” (Walter Benjamin). A citação permite ao Mundo Livre sair do seu espaço tempo e passear por outros espaços tempos. Tratar-se-ia de um passeio nostálgico pelo samba como Marisa Monte praticou em seu disco Cor de Rosa e Carvão de 1994, no qual ela regravou “Dança da Solidão” de Paulinho da Viola e “Balança a Pema” de Jorge bem? Em seu disco, Marisa Monte imprime uma marca de continuidade na produção musical brasileira. Se Paulinho da Viola parou de gravar, o mercado pode contar com o retrô chique de Marisa Monte para cobrir essa lacuna. A opção Marisa Monte dificilmente percorreria seja o espaço tempo que um Paulinho da Viola percorrera e deixara em aberto. Alguns setores da classe média se identificaram com a opção Marisa Monte porque ela se disfarçava bem a sua falta de estofo com uma boa voz e uma boa seleção de músicas. O retrô chique de Marisa Monte cola Jorge Bem e Paulinho da Viola numa mesma perspectiva histórica e artistica. O Mundo Livre passeia por uma ideia de Samba. A sua ideia é que o Samba chegou despedaçado nos anos 80. Marisa Monte colou tão bem o Samba de Jorge com o Samba de Paulinho que todos acreditaram ver uma linha temporal passar pelos dois e que levaria a Marisa. Para o Mundo Livre uma linha temporal não passa por esse e aquele compositor ao mesmo tempo. A indústria cultural estimula que opções como Marisa Monte ou o Pagode ou o Brega ou o Sertanejo ou a Axé Music surjam mais vezes porque ele perdeu a paciência com o tempo original do Samba que levava décadas formando compositores e músicos em geral. O mercado não espera que o texto ou a música vire uma referencia e só depois daí em diante iria atrás de novos textos ou novas músicas. Daqui para frente, num mesmo individuo ou numa mesma banda, o publico escutará um samba ou um brega. Em sua resenha sobre o “Guentando a Oia”, Mundo Livre, Pedro Alexandre Sanches anui com uma visão que perpassa parte da critica na qual se confere ao Mundo Livre uma herança pop modernista. Por essa visão, o mercado é o espaço aonde o artista busca suas fontes. Só que o Mundo Livre visita o mercado e a História para embasar a sua interpretação sobre o mercado e sobre a História. E a resenha de Pedro Alexandre também concorda com essa postura do Mundo Livre ao admitir que “A Música que os Loucos Ouvem” retoma um lirismo que parecia esquecido desde que Paulinho da Viola se calara no final dos anos 80. O lirismo que Pedro se refere não é o da música pop e sim o do Samba tradicional.

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