quarta-feira, 12 de junho de 2013

Da Amazônia ao Cerrado, o intercâmbio dos povos indígenas

A civilização Inca sempre gozou de grande prestígio nas narrativas históricas, entre nós, fazendo-nos acreditar que os seus agrupamentos humanos fossem, em todos os aspectos, superiores aos povos que habitavam a Amazônia, no período pré-colombiano. 

O fato é que as populações tanto dos incas quanto da Amazônia, sempre mantiveram um contato próximo e nunca estiveram separadas. Esse intercâmbio cultural já se fazia há milênios, compartilhando o seu patrimônio imaterial, como musicas, línguas, histórias e saberes.

Sabe-se hoje que a dinâmica de atividades desenvolvida na floresta amazônica era muito mais complexa do que se poderia imaginar ou concluir, pois nem sempre os vestígios da ocupação humana na Amazônia são conservados adequadamente. Isso ocorre, essencialmente, pelo fato de que a maioria dos artefatos fabricados pelos indígenas amazônicos era feito de materiais perecíveis, como madeira, fibras, e outros derivados orgânicos. Como o clima da floresta é muito úmido, a deterioração desses artefatos é acelerada. Com esse empecilho, fica mais difícil resgatar a pré-história da ocupação local. Até mesmo a arte rupestre fica prejudicada, pois os pigmentos podem sofrer muito com a ação da umidade.

As relações entre povos Incas e os da Amazônia ocidental parecem ter sido muito mais intensas do que se supunha, o que obrigava aqueles a serem mais diplomáticos e flexíveis a fim de conquistar estes.
Sabe-se hoje que havia extensas redes de comércio entre esses dois lugares. Enquanto penas, algodão, tecidos e plantas subiam a cordilheira, metais (machados de cobre) e tecidos de lã desciam para a floresta.
Mas como isso é possível de ser constatado, se ficou encoberto durante tantos séculos? Uma das formas de se perceber esse intercâmbio é a iconografia (desenhos, imagens, pinturas) do templo andino chamado Chavín de Huantar (1.000 a.C. , 250 quilômetros de Lima). São desenhos de mais de três mil anos, fazendo referência a ícones (símbolos, imagens, referentes) da floresta tropical.

Restos de uma madeira chamada chonta (família das palmeiras ou palmáceas), originária da Amazônia, foram encontrados plataformas cerimoniais incas, localizadas no topo de nevados andinos (1.400 d.C.). A conservação de materiais como a madeira, por centenas de anos, sem o cuidado específico dos aparatos modernos, como: regulação da umidade, temperatura ideal, ausência de micro-organismos que se alimentam de celulose, luminosidade adequada etc., somente é possível em determinadas condições, que é o que parece ter ocorrido nos andes.A temperatura e umidade do ar são elementos que ajudaram a preservar ou destruir muitos tesouros arqueológicos ao redor do mundo.

Há também outras provas que, graças à sua conservação adequada, apontam para a conexão entre esses povos chamados pré-colombianos. Um manuscrito, chamado de “Manuscrito de Huarochiri”, em língua quéchua (lê-se: ketchua) - provavelmente uma obra literária coletiva -, que, além de ser o único elaborado exclusivamente nesta língua, sugere a influência mitológica do povo amuesha, da Amazônia, em relação dos povos andinos. Ou seja, os povos andinos teriam sofrido influências dos amazônicos, pelo menos mitologicamente.

Por outro lado, as narrativas amueshas(amazonenses) sempre remetem a lugares localizados nas atuais cidades peruanas de Tarma e La Oroya, leste de Lima. A mitologia dos povos amueshas, bem como o manuscrito acima descrito, descrevem deslocamentos de povos que habitavam a área andina, mas foram levados a migrar rumo aos vales tropicais da Alta Amazônia, devido à chegada de um poder maior e centralizador: os incas.

O que se depreende dessas informações é que, os povos andinos e amazônicos, mantiveram alto grau de influências mútuas, muito mais do que meramente comerciais. Na verdade o império Inca ocupou timidamente a região de Cuzco, no século XIII, mas a sua gradativa expansão interferiu diretamente no intercâmbio de relações com os povos amazônicos.

O império Inca se auto-intitulavaTahuantinsuyu, na língua quéchua. Para manter o seu domínio, estes povos ordenavam o deslocamento de populações inteiras para trabalhos na construção civil e agricultura. Esse sistema mostrou-se economicamente viável, ao mesmo tempo em que evitava a insurreição de populações descontentes com a administração inca, pois desarticulava qualquer aliança entre povos já habituados a um convívio mútuo. Levando populações inteiras para conviver com outras etnias, os Incas, além de evitar os conchavos, ainda obrigavam-nos a usar a língua quéchua em suas relações cotidianas.

O uso da língua como ferramenta de hegemonia cultural também foi empregado largamente contra os nossos povos indígenas, notadamente pelo trabalho de unificação promovido pelo Marquês de Pombal, que proibiu o uso do Tupi no ensino escolar, o que refletiu nos seminários brasileiros, que formavam padres. Um dos exemplos mais pungentes foi o de uma escola no sul do país, para onde crianças guaranis eram levadas, sendo obrigadas a falar a língua francesa, mesmo em conversações dentro do internato. Consequência disso era a dificuldade de comunicação entre essas crianças e os seus pais, nos períodos de férias, visto que o entendimento entre ambos ficava mais difícil a cada ano.

No caso dos Incas, a implantação de seu sistema de regulação socioeconômica baseava-se em um esquema de redistribuição de bens produzidos. Esse sistema funcionou muito bem em quase toda a área andina, mas não prosperou junto aos povos amazônicos. Os nossos indígenas amazonenses freavam o avanço do império andino não aceitando se submeter ao seu comando. Até mesmo para os próprios povos que habitavam a região dos andes, o império Inca era visto como uma tirania que explorava os seus vassalos.
Curioso era que, após várias investidas e expedições infrutíferas, os Incas é que tiveram de se adaptar a formas paralelas de intercâmbio com os indígenas amazônicos, baseados em reciprocidade, regime que hoje é muito usado em relações diplomáticas internacionais. Ou seja, quando um país cede vantagens a outro país, essas vantagens passam a ser recíprocas entre os dois países, por exemplo.

Antes da instalação do império Inca, sabe-se que o manejo dos recursos naturais já havia encontrado formas de explorar diferentes ambientes ecológicos e, em alguns casos, compartilhando esses mesmos nichos ecológicos com populações distantes. Essa capacidade de exploração de ambientes ecológicos distintos facilitou a administração pelo império Inca, pois assim poderiam tirar proveito da variedade e diversidade de possibilidades que a região oferecia. Dessa forma, faziam plantações de coca em uma região, permitindo que a população dessa mesma região explorasse metais preciosos, como a prata, em outra região dominada pelos Incas.

Hoje sabe-se que os povos da Amazônia ocidental faziam parte do império Inca, embora de forma marginal e, na maioria dos casos, com regras de convivência estabelecidas pelos povos amazônicos, e não pelo império Inca.

No caso do Cerrado, o aproveitamento de nichos específicos foi observado também por povos que se especializaram em explorar ambientes distintos, para a garantia de sua sobrevivência. Caso clássico é o dos Avá-canoeiros, que eram conhecidos por serem exímios navegadores fluviais. Os Kayapós, por sua vez, desenvolveram técnicas de plantio próximo a matas, utilizando matéria orgânica decomposta para fertilizar o solo onde fariam as suas roças.

Para manter esse fértil intercâmbio, os povos da floresta também organizavam expedições em direção aos Andes. Indígenas Guaranis penetraram também o império Tahuantinsuyu a partir do século XV. Fortalezas edificadas no território onde hoje é a Bolívia apontam para o seu empenho em estabelecer defesas contra ataques provenientes das terras baixas.

Quando os espanhóis chagaram ao território onde hoje fica o Peru, no século XVI, tudo mudou. A partir desse momento a Amazônia ocidental começa a experimentar marginalização em relação à história indígena sul-americana. As crônicas espanholas sempre se referiam aos indígenas da Amazônia como selvagens, assim como o alemão Hans Staden disserta em seu livro, publicado em 1557 na Alemanha, cujo título é: “Suas viagens e captiveiro entre os selvagens do Brasil”. Da mesma forma que Hans Staden descreve os Tupinambás (também conhecidos como Tamoios) no Brasil, os espanhóis também o fazem com os indígenas da Amazônia, generalizando-os como sendo bárbaros, antropófagos e carentes de civilização.

Foi o olhar europeu que criou essa divisão artificial entre povos, cujos costumes e práticas sempre foram convergentes. Os espanhóis sempre retratavam os indígenas da Amazônia ocidental como sendo inferiores aos povos Incas, embora houvesse relatos diferentes e não generalizantes sobre tais etnias, o que, no geral, não prevaleceu como regra.

No cômputo geral, todas as visões e relatos que se estabeleceram em relação aos povos indígenas, a partir da chegada dos europeus, foram determinados pelos interesses políticos e econômicos. Os Tupinambás no Brasil eram aliados dos franceses e, por isso, hostilizados pelos portugueses. Os Tupiniquins eram aliados dos portugueses, e por isso eram tratados com mais simpatia por estes. Não é à toa que ainda hoje somos chamados de nação Tupiniquim, pois estes povos eram os que mais atenderam aos interesses dos portugueses, ajudando-os a estabelecer as suas bases e dominar outras nações indígenas, além de servirem de intérpretes nas expedições rumo ao Cerrado.

Quando os espanhóis chegaram ao Peru, este passava por sérios conflitos políticos, o que lhes facilitou a invasão e o desmonte de várias instituições incaicas. As relações entre os povos andinos e amazônicos foram seriamente afetadas. Com o assassinato do líder Atahualpa, pelos espanhóis, e o progressivo avanço de seus domínios na região, os indígenas amazonenses foram ainda mais estigmatizados, visto que não eram aliados dos espanhóis e não se sujeitariam ao seu sistema de exploração.
Como muito bem frisou Cristiana Bertazoni, essa visão, que prevaleceu por séculos, hoje se mostra insustentável, visto que as alianças estabelecidas pelos europeus é que determinaram a descrição conveniente sobre os povos indígenas.

No caso do Cerrado brasileiro, várias são as técnicas de manejo e sobrevivência adquiridas por herança indígena. Desde as formas de aproveitamento dos recursos da fauna e flora, até coreografias em danças, como é o caso da catira, influência direta dos indígenas.

Com mais apuro na análise dos fatos, descobrimos que somos muito mais próximos dos nossos vizinhos indígenas do que a história tradicional supunha.

•Silva Braulio A. Calvoso. Cerrado: 11 mil anos em histórias. Brasília, 2012 (ainda sem publicação);
•STADEN, Hans. Suas viagens e captiveiro entre os selvagens do Brasil.  Instituto Histórico e Geographico de São Paulo, 1900 [1557];
•Cristiana Bertazonié coordenadora do Centro de Estudos Mesoamericanos e Andinos da USP e autora da tese Antisuyu: Aninvestigationof Inca attitudestotheir Western Amazonianterritories(UniversityofEssex, Reino Unido, 2007).
(Bráulio Antônio Calvoso Silva é professor – Literatura Portuguesa; Língua Japonesa; pesquisador; escritor; e-mail: brauliocalvoso@hotmail.com)


Diário da Manhã
Bráulio Antônio Calvoso Silva 
http://arquivo.dm.com.br

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