Fátima Mello, do Núcleo de Justiça Ambiental e direitos da FASE
Os governos do Brasil, Japão e Moçambique estão iniciando a execução de
um grande programa no norte de Moçambique, no chamado Corredor de
Nacala, região que possui características físicas e ambientais muito
similares ao Cerrado brasileiro. Apesar do padrão vigente de falta de
informação às comunidades que serão afetadas ou, muito pior, da
disseminação de informações distorcidas e contraditórias, o que se diz é
que o ProSavana tem um horizonte de duração de 30 anos e abrangerá uma
área estimada em 14,5 milhões de hectares nas províncias de Nampula,
Niassa e Zambezia, onde cerca de 5 milhões de camponeses vivem e
produzem alimentos para o abastecimento local e regional. As comunidades
camponesas estão concentradas exatamente onde está prevista a chegada
dos investimentos do ProSavana.
Apesar da Agência Brasileira de Cooperação (ABC) insistir na tese de
que as críticas em curso decorrem de falhas de comunicação, o diálogo
com organizações e movimentos sociais parceiros em Moçambique evidencia
que o problema é mais grave: o Brasil está exportando para a savana
moçambicana seus históricos conflitos entre o modelo de monoculturas em
larga escala do agronegócio voltadas para exportação e o sistema de
produção de alimentos de base familiar e camponesa.
Em recente divulgação de informações sobre o ProSavana em Maputo, os
responsáveis pelo programa apresentaram um mapa do Corredor de Nacala
dividido em áreas que serão destinadas à atração de investidores
privados para “culturas de alto valor” e “clusters agrícolas” para a
produção de grãos (entre eles a soja) pela agricultura “empresarial”,
produção familiar de alimentos pela “agricultura familiar”, grãos e
algodão pela “agricultura empresarial de média e grande escalas”, caju e
chá pela “agricultura empresarial média e familiar”, e a “produção
integrada de alimentos e grãos” por todas as categorias. Ou seja, a
velha tese da convivência possível e harmônica entre os sistemas de
produção do grande agronegócio e da agricultura familiar e camponesa,
que no Brasil é fonte de intensos conflitos.
Enquanto os governos garantem que o programa trabalhará com a pequena
produção camponesa em Moçambique, em 2011 a ABC ajudou a organizar a
viagem de um grupo de 40 empresários da Confederação Nacional da
Agricultura (CNA), da região do Cerrado, estado de Mato Grosso, para
identificarem oportunidades de negócios no Corredor de Nacala. O
presidente da Associação Mato-Grossense dos Produtores de Algodão (Ampa)
afirmou que “Moçambique é um Mato Grosso no meio da África, com terra
de graça, sem tanto impedimento ambiental e frete mais barato para a
China” . São inúmeras as notícias de imprensa que falam de uma
reprodução em Moçambique do Prodecer, o desastre socioambiental
implantado pela cooperação japonesa no Cerrado brasileiro, que expulsou
populações tradicionais de seus territórios, abriu um oceano de
monoculturas para exportação e inundou a região de agrotóxicos.
Até agora se diz que o ProSavana terá 3 eixos: um de fortalecimento
institucional e pesquisa; um segundo de montagem de um estudo base para a
elaboração do Plano Diretor (a instituição escolhida para elaborar o
estudo é a GV Agro); e um terceiro de extensão e modelos onde afirma-se
que MDA, Emater entre outros atuariam a favor das demandas da sociedade
civil de apoio aos pequenos produtores. Em resposta às demandas de
entidades e redes como UNAC, ORAM, ROSA, Plataforma de Organizações da
Sociedade Civil de Nampula, MUGED, Fórum Terra, União Provincial de
Camponeses de Niassa, Justiça Ambiental entre muitas outras por
informações, acesso às versões do Plano Diretor em elaboração e que as
comunidades camponesas sejam consultadas, as autoridades brasileiras
afirmam que o Plano Diretor será divulgado da melhor forma possível
quando estiver finalizado. Ou seja, um estudo com base na GV Agro está
em elaboração sem que as entidades que representam os milhões de
camponeses que vivem na região sejam sequer consultadas. Apenas
receberão a informação quando o Plano Diretor estiver pronto. Eventos de
lançamento de versões do Plano Diretor são realizados, visando
transmitir alguma informação, mas não para um diálogo qualificado nem
para colher demandas e propostas das organizações e movimentos sociais.
Conversando com camponeses ao longo do Corredor de Nacala fica claro que
brasileiros e japoneses estão indo às comunidades para avisar que o
ProSavana está chegando. Depois, afirmarão que fizeram as chamadas
consultas à sociedade civil. Isso que estão fazendo não é consulta; até
agora o que existe é um grave problema de metodologia na definição dos
conteúdos e dos interesses que serão atendidos pelo programa, que estão
sendo definidos de cima para baixo, pelos governos e empresas
interessadas.
Percorrendo o Corredor de Nacala fica muito claro o que afirmam as
organizações e movimentos sociais de Moçambique: a região é toda povoada
por comunidades camponesas, que com seus sistemas de produção em pousio
cultivam milho (o principal alimento do país), mandioca, feijão,
amendoim. Ali vivem, produzem, realizam suas festas, desenvolvem em seus
territórios relações familiares e comunitárias. Na região vivem cerca
de 5 milhões de camponeses. As entidades e movimentos que os representam
identificam a insegurança alimentar como um grande problema no país, e
desejam que a produção de alimentos realizada pelo sistema da
agricultura familiar e camponesa seja fortalecida. Suas propostas
incluem crédito para o fortalecimento de sua produção, apoio à
comercialização e compra da produção por preço justo, apoio às
associações de pequenos produtores e entidades criadas pelas
comunidades. Todos querem participar de programas que apoiem seus
sistemas de produção. Depois de escutar e dialogar com eles ao longo do
Corredor e ver suas esperanças de que o ProSavana poderia ir ao encontro
de suas propostas, quando se chega à Nacala o choque é gritante: uma
cidade tomada pela construção de uma gigantesca infraestrutura de mega
armazéns, portos e um aeroporto (construído pela Odebrecht) para
exportar a produção da região.
Muitos problemas precisam ser enfrentados. O direito dos camponeses à
terra é o principal. A Lei de Terras de Moçambique lhes dá o direito de
uso da terra, que é pública. O direito de uso será concedido às
empresas? Como ficará a situação dos camponeses? Como diz um membro da
Plataforma de Organizações da Sociedade Civil de Nampula, do centro do
Corredor até Nampula “não existe área com mais de 10 hectares de terras
desocupada”. Em Niassa as entidades afirmam que a província é toda
povoada, exceto nas montanhas, e que todo o Corredor onde está prevista a
chegada do ProSavana é a área mais habitada. Os governos admitem que
haverá reassentamentos.
As entidades estão vigilantes e mobilizadas para não permitirem
mudanças contrárias aos interesses dos camponeses na Lei de Terras e na
legislação sobre sementes, que corre o risco de ser alterada para
viabilizar o uso de transgênicos. Estão preocupados com o modelo de
monocultivos em larga escala e intensivo em uso de agrotóxicos que
conheceram quando visitaram o estado do Mato Grosso e a área do
Prodecer. Enquanto isso, realizam ações de resistência produtiva e de
fortalecimento de alternativas, como é o caso do intercâmbio entre UNAC e
MPA/Via Campesina sobre sementes nativas.
Há uma década, por orientação do presidente Lula, a política externa
brasileira começou a se abrir ao diálogo com organizações e movimentos
sociais. Com isso se fortaleceu a necessária disputa de rumos sobre a
presença do Brasil no mundo, pois ela é o espelho da correlação de
forças existente em nossa sociedade. O caso do ProSavana é crucial para
que as conquistas dos movimentos sociais do campo brasileiro a favor da
segurança e soberania alimentar, traduzidas em programas de apoio à
produção e comercialização da produção familiar e camponesa, sejam
refletidas na presença brasileira no Corredor de Nacala.
Afinal, é disso que os camponeses e pequenos produtores precisam - no
Brasil e em Moçambique - para se fortalecerem contra as injustiças
sociais e ambientais e violações de direitos cometidas pelo modelo do
agronegócio, para garantirem o direito à terra, à segurança e à
soberania alimentar da população. Que a presença do Brasil em Moçambique
fortaleça os direitos dos camponeses, e que assim o Brasil seja capaz
de demonstrar na prática que sua crescente presença como ator global
visa de fato reduzir as desigualdades e fazer justiça.
(*) Agradecimentos a UNAC, ORAM e Oxfam Internacional no Brasil e Moçambique.
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