Por Carolina Vaz, da FASE
Guilherme Carvalho, técnico da FASE Amazônia, acompanha o impacto
socioambiental do monocultivo de dendê em comunidades do Baixo
Tocantins, no Pará. Participou, no dia 28 de fevereiro, de dois eventos
sobre o tema em Belém: um na FASE Amazônia, o outro, o seminário
“Agrocombustíveis, Mercado de Terras e Povos Tradicionais no Pará”, no
campus da UFPA. Nesta entrevista a seguir, ele apresenta o ambiente de
ameaças que a indústria de dendê representa aos agricultores familiares,
quilombolas e ribeirinhos da Amazônia.
Quem são os principais atingidos pela indústria dos agrocombustíveis no Pará? E os principais beneficiados?
Os beneficiados são as grandes empresas, como a Biopetro, Biovale e Agropalma.
Principalmente na região do Baixo Tocantins, os maiores atingidos pelo avanço do cultivo de dendê são os povos ribeirinhos, quilombolas e agricultores familiares. Existe uma pressão muito grande para que se integrem à produção de dendê, o que ocasiona a divisão da unidade do grupo, no caso dos quilombolas. As violações são muitas: a comunidade Castanhalzinho, localizada na cidade de Concórdia do Pará, por exemplo, ia receber o Programa Luz para Todos, mas a empresa Biovale comprou a fazenda onde estavam instalados os postes e a fiação elétrica. O que fez a empresa? Retirou a fiação. Com isso, a comunidade vive ainda hoje sem acesso a energia.
Os problemas relacionados aos agrotóxicos são variados. Quilombolas e agricultores familiares fazem muitas queixas em relação à água, que chega depois de passar por propriedades da Biovale. O plantio de dendê exige o uso de grande quantidade de agrotóxicos, que vão parar nos braços de rios e lençóis freáticos, e chegam às comunidades na água contaminada. Muitas já sofrem com problemas de pele por causa disso. Muitas mulheres não querem usar a água para lavar roupa porque já percebem a pele escamando.
As pragas são outro problema. Com o uso de venenos nas propriedades das empresas, as pragas acabam indo para as propriedades das famílias. Isso afeta a agricultura familiar e inclusive a criação de pequenos animais, inviabilizando a reprodução socioeconômica dessas pessoas, e elas acabam vendendo as propriedades.
Ressalto também que as grandes empresas promovem a concentração
fundiária nessas regiões, inclusive com capital estrangeiro. Outro
impacto grave ligado indiretamente a esse cultivo é o uso de drogas por
trabalhadores. Há uma etapa do cultivo de dendê que exige muito do
trabalhador, é um trabalho árduo no sol, e nós ouvimos relatos e
encontramos pessoas que, para suportarem isso, consomem cocaína. Houve o
relato feito por um agenciador de mão de obra de que um de seus
trabalhadores pagou cerca de R$ 600 para o fornecedor de cocaína, quando
o seu salário naquele mês foi de R$ 900. Então, essas cidades, apesar
de pequenas, já enfrentam problemas de cidade grande, e nós não vemos os
governos enfrentando resolutamente tal situação.
É possível descrever a ligação desses empreendimentos com
outros no estado, como a mineração, ou a instalação de grandes
hidrelétricas, como é o caso de Belo Monte?
Tem ligação com a Vale, que atua com a mineração na região do Baixo
Tocantins, com empreendimentos no Distrito Industrial de Barcarena, o
quais contam com capitais japonês e norueguês, entre outros. Aquela
região é recortada por diversos rios, encontra-se próxima da Região
Metropolitana de Belém, é dotada de expressiva malha rodoviária e está
próxima à Foz do Amazonas. Por tudo isso, é uma área estratégica para
aprofundar a conexão da Amazônia com o mercado internacional. Hoje o
governo quer estender a ferrovia Norte-Sul [ferrovia concessionarizada à
Vale que hoje atravessa estados do Centro Oeste e do Nordeste],
chegando até Barcarena, onde tem o Distrito Industrial de Barcarena, e
então a região será um grande entroncamento logístico voltado à
exportação. Além disso, a Confederação Nacional da Indústria (CNI)
elaborou o projeto ‘Norte Competitivo’, que propõe a execução de 151
grandes projetos de infraestrutura, e vários se situam no Baixo
Tocantins. Isso está promovendo uma forte reconfiguração
sócio-territorial, é uma grande disputa para ver quem garante o acesso,
controle e uso dos territórios, principalmente os ricos em recursos
naturais. O que a gente vê na Amazônia e no Baixo Tocantins em geral é a
disseminação do conflito.
Como se diferenciam aos problemas socioambientais causados por
essa produção dos causados pelos demais agrocombustíveis, como
cana-de-açúcar e soja?
No dendê, a mecanização não é tão intensa como na produção da cana. Por outro lado, há uma tentativa muito forte das grandes empresas como a Biopetro, Biovale e Agropalma de envolver agricultores familiares na produção da palma, mas o uso da terra familiar para esse cultivo gera vários problemas a essas pessoas, como o risco da segurança alimentar e nutricional [ao não cultivarem alimentos para consumo], a perda da autonomia sobre suas terras, a dependência dos preços no mercado do monocultivo de dendê, e a desestruturação do modo de vida dessas comunidades. São contratos que colocam grandes responsabilidades para os agricultores e grandes vantagens para as empresas.
A FASE, junto com a UFPA, acaba de realizar um seminário sobre o tema. Porque este evento foi realizado neste momento?
Na verdade, foram dois eventos ligados ao tema: um na FASE e o Seminário, ambos no dia 28 de fevereiro. Mas antes, eu e um colega havíamos acompanhado a jornalista Verena Glass, da ONG Repórter Brasil, na visita a quatro municípios: Acará, Concórdia do Pará, Igarapé-Miri e Abaetetuba. Ela está elaborando um relatório sobre os impactos do monocultivo de dendê na região e a violação de direitos. Depois, fizemos um evento na FASE, com sindicatos, movimentos sociais, além de pessoas ligadas à academia e à Embrapa, fazendo uma análise dos problemas encontrados. Também constituímos uma lista de contatos pela internet e a ideia é iniciar uma articulação em torno da problemática desse monocultivo.
E, na universidade, fizemos o seminário, no qual foram apresentados estudos sobre o cultivo de dendê, e eu e Verena fizemos uma abordagem a partir do ponto de vista da sociedade civil, expondo o que vimos. Houve, então, um debate sobre isso. O presidente de uma associação quilombola, da cidade de Concórdia do Pará, participou desse evento relatando os problemas que sua comunidade sofre por conta da atuação da BioVale.
Existe no estado o incentivo à agricultura familiar para
produção do dendê? Ela existia antes da chegada das monoculturas? Já foi
maior do que é hoje?
Existe numa lógica empresarial. Há um conjunto de ações que concorrem para forçar a agricultura familiar a investir nesse monocultivo. Incentivos do governo federal através do PRONAF Dendê, promessas de regularização fundiária para quem se dispuser a plantar dendê nas suas terras etc., inclusive, vários técnicos da EMATER foram deslocados para prestar assistência técnica aos plantadores da palma. Portanto, são constrangimentos de variados tipos sobre a agricultura familiar. Não encontramos nas nossas andanças o cultivo de dendê por cooperativas ou por grupos de famílias sem vinculação com as grandes empresas , porque é uma cultura que não existia aqui. O dendê foi colocado aqui a partir das empresas. Não há uma tradição de agricultura familiar, é uma ação empresarial.
O dendê é conhecido como “Diesel do Desmatamento”. Você acredita que seria possível produzir agrocombustíveis na Amazônia sem desmatar, ou ao menos com menos impactos? Aliás, poderia ser uma boa alternativa para a região a produção de agrocombustíveis?
O discurso diz isso, que é possível sem desmatar, mas não é o que a gente vê. A experiência que temos acompanhado em outros países é marcada pela violação de direitos, a níveis ambiental e social. É o que está acontecendo aqui.
De que modo a FASE atua no combate a essas violações causadas pelo monocultivo de dendê?
A FASE atua nessa região numa relação forte com cooperativas para fortalecer a agroecologia, tentar garantir a consolidação da agricultura familiar, com diversificação produtiva. Assim como atua também nos outros estados, como no Mato Grosso, Bahia e Espírito Santo. Existe inclusive o Comitê Regional Fundiário, no qual várias organizações estão desenvolvendo ações para garantir a regularização fundiária de famílias, quilombolas e ribeirinhos. A FASE é um dos atores sociais nesse processo.
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