Dom Tomás Balduíno, bispo emérito de
Goiás, retomou denúncia, em artigo na Folha de S. Paulo, de golpe da
família Kátia Abreu contra 80 famílias de pequenos agricultores em
Campos Lindos, no Tocantins.
O governador Siqueira Campos decretou de
“utilidade pública”, em 1996, uma área de 105 mil hectares em Campos
Lindos. Logo em 1999, fazendeiros foram contemplados com áreas de 1,2
mil hectares, por R$ 8 o hectare.
Na lista, preparada pela Federação da
Agricultura e Pecuária do Estado do Tocantins, presidida por Kátia
Abreu, o irmão dela Luiz Alfredo Abreu conseguiu uma dessas áreas.
No artigo, Dom Tomás também relata a
apreensão das lideranças camponesas e indígenas com a possibilidade de
Kátia Abreu se tornar ministra da Agricultura no governo Dilma.
Kátia Abreu respondeu e acusou o bispo
de falso testemunho ao dizer que ele mente ao acusá-la de ter despejado
um pequeno agricultor, em artigo na Folha.
Em
dezembro, Dilma entregou a Dom Tomás Balduíno, junto com Dom Pedro
Casaldáliga, uma homenagem especial do Prêmio Direitos Humanos, da
Secretaria de Direitos Humanos.
“Dom Pedro Casaldáliga e dom Tomás
Balduino são dois homens que o Brasil aprendeu a admirar e dos quais eu
me orgulho de ser contemporânea. Faço questão de informar que o Estado
se manterá dedicado com todos os meios de forças policiais e civis
disponíveis para garantir sua segurança e proteção”, afirmou a
presidente na solenidade.
Abaixo, leia reportagem do repórter
Leandro Fortes sobre o golpe de Kátia Abreu nos camponeses do Tocantins,
publicada por Carta Capital em novembro de 2009. Leia abaixo ou Clique aqui para baixar o PDF da revista.
Golpe contra camponeses
Por Leandro Fortses - Da Carta Capital
Em dezembro passado, a senadora Kátia
Abreu, do DEM Tocantins, assumiu a presidência da Confederação Nacional
da Agricultura e Pecuária (CNA) com um discurso pretensamente
modernizador.
Previa uma nova inserção social dos
produtores rurais por meio de “rupturas” no modo de se relacionar com o
mercado, o consumidor, o governo e a economia global. Pretendia, segundo
ela mesma, “remover os preconceitos” que teriam isolado os ruralistas
do resto da sociedade brasileira e cravado neles a pecha de “protótipos
do atraso”.
Diante de uma audiência orgulhosa da
primeira mulher a assumir o comando da CNA, Kátia concluiu: “Somos o que
somos e não quem nos imaginam (sic)”. Foi efusivamente aplaudida. E
tornou-se musa dos ruralistas.
Talvez, em transe corporativo, a platéia
não tenha percebido, mas a senadora parecia falar de si mesma. Aos 46
anos, Kátia Abreu é uma jovem liderança ruralista afeita à velha
tradição dos antigos coronéis de terras, embora, justiça seja feita, não
lhe pese nos ombros acusações de assassinatos e violências outras no
trato das questões agrárias que lhes são tão caras. A principal arma da
parlamentar é o discurso da legalidade normalmente válido apenas para
justificar atos contra pequenos agricultores.
Com a espada da lei nas mãos, e com a
aquiescência de eminências do Poder Judiciário, ela tem se dedicado a
investir sobre os trabalhadores sem-terra. Acusa-os de serem financiados
ilegalmente para invadir terras Brasil afora.
Ao mesmo tempo, pede uma intervenção
federal no estado do Pará e acusa a governadora Ana Júlia Carepa de não
cumprir os mandados de reintegração de posse expedidos pelo Judiciário
local. O foco no Pará tem um objetivo que vai além da política. A
senadora, ao partir para o ataque, advoga em causa própria.
Foram ações do poder público que lhe
garantiram praticamente de graça extensas e férteis terras do Cerrado de
Tocantins. E mais: Kátia Abreu, beneficiária de um esquema investigado
pelo Ministério Público Federal, conseguiu transformar terras produtivas
em áreas onde nada se planta ou se cria. Tradução: na prática, a musa
do agronegócio age com os acumuladores tradicionais de terras que
atentam contra a modernização capitalista do setor rural brasileiro.
De longe, no município tocantinense de
Campos Lindos, a mais de 1,3 mil quilômetros dos carpetes azulados do
Senado Federal, ao saber das intenções de Kátia Abreu, o agricultor
Juarez Vieira Reis tentou materializar com palavras um conceito que, por
falta de formação, não lhe veio à boca: contras-senso.
Expulso em 2003 da terra onde vivia,
graças a uma intervenção política e judicial capitaneada pela senadora
do DEM, Reis rumina o nome da ruralista como quem masca capim danado. Ao
falar de si mesmo, e quando pronuncia o nome Kátia Abreu, o camponês de
61 anos segue à risca o conselho literal da própria. Não é, nem de
longe, quem ela imagina.
Em 2002, Reis foi expulso das terras
onde havia nascido em 1948. Foi despejado por conta de uma reforma
agrária invertida, cuja beneficiária final foi, exatamente, a senadora.
Classificada de “grilagem pública” pelo Ministério Público Federal do
Tocantins, a tomada das terras de Reis ocorreu numa tarde de abril
daquele ano, debaixo da mira das armas de quinze policiais militares sob
as quais desfilaram, como num quadro de Portinari, o agricultor, a
mulher Maria da Conceição, e dez filhos menores.
Em um caminhão arranjado pela Justiça de
Tocantins, o grupo foi despejado, juntamente com parte da mobília e sob
um temporal amazônico, nas ruas de Campos Lindos. “Kátia Abreu tem um
coração de serpente”, resmunga, voz embargada, o agricultor, ao
relembrar o próprio desterro.
Em junho de 2005, Reis reuniu dinheiro
doado por vizinhos e amigos e foi de carona a Brasília a fim de fazer,
pessoalmente, uma reclamação na Comissão de Direitos Humanos da Câmara
dos Deputados. Na capital federal, alojou-se na casa de amigos, no
miserável município goiano de Águas Lindas, e se alimentou de restos de
almoço servido numa pensão da cidade.
Aos técnicos da comissão apresentou
documentos para provar que detinha a posse da terra em questão de 545
hectares, desde 1955, parte da fazenda Coqueiros, de propriedade da
família, numa região conhecida como Serra do Centro. De acordo com a
documentação apresentada pelo agricultor, uma ação de usucapião da
fazenda havia sido ajuizada em agosto de 2000.
Após esse ajuizamento, um vizinho de
Reis, o também agricultor Antônio dos Santos, ofereceu-lhe para venda de
uma área contígua de 62 hectares, sob sua posse havia onze anos, cuja
propriedade ele alegava ser reconhecida pelo governo de Tocantins. O
negócio foi realizado verbalmente por 25 mil reais como é costume na
região até a preparação dos papéis. Ao estender a propriedade, Reis
pretendia aumentar a produção de alimentos (arroz, feijão, milho,
mandioca, melancia e abacaxi) de tal maneira de sair do regime de
subsistência e poder vender o excedente.
Ele não sabia, mas as engrenagens da
máquina de triturar sua família haviam sido acionadas uns poucos anos
antes, em 1996, por um decreto do então governador do Tocantins Siqueira
Campos (PSDB). O ato do tucano, mítico criador do estado que governou
por três mandatos, declarou de “utilidade pública”, por suposta
improdutividade, um área de 105 mil hectares em Campos Lindos para fins
de desapropriação. Protocolada pela comarca de Goiatins, município ao
qual Campos Lindos foi ligado até 1989, a desapropriação das terras foi
tão apressada que o juiz responsável pela decisão, Edimar de Paula,
chegou à região em um avião fretado apenas para decretar o processo. O
magistrado acolheu um valor de indenização irrisório (10 mil reais por
hectare), a ser pago somente a 27 produtores da região.
Do outro lado da cerca ficaram 80
famílias de pequenos agricultores. A maioria ocupava as terras a pelo
menos 40 anos de forma “mansa e pacífica”, como classifica a legislação
agrária, cujas posses foram convertidas em área de reserva legal, em
regime de condomínio, sob o controle de grandes produtores de soja. Na
prática, os posseiros de Campos Lindos passaram a viver como refugiados
ilegais nessas reservas, torrões perdidos na paisagem de fauna e flora
devastados de um Cerrado em franca extinção. Sobre as ruínas dessas
famílias, o governador Siqueira Campos montou uma confraria de
latifundiários alegremente formada por amigos e aliados. A esse
movimento foi dado um nome: Projeto Agrícola de Campos Lindos.
Em 1999, quatro felizardos foram
contemplados com terras do projeto ao custo de pouco menos de 8 reais o
hectare (10 mil metros quadrados), numa lista preparada pela Federação
da Agricultura e Pecuária do Estado do Tocantins (Faet). A federação
teve o apoio da Companhia de Promoção Agrícola (Campo), entidade fundada
em 1978, fruto do acordo entre consórcios que implantaram o Programa de
Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados
(Prodecer) em parceria com o Banco do Brasil e com cooperativas de
produtores.
Escrúpulos às favas, os dirigentes de
ambas as instituições se esbaldaram nas posses de Campos Lindos. À
época, a presidente da Faet era ninguém menos que Kátia Abreu, então
deputada federal pelo ex-PFL. No topo da lista, a parlamentar ficou com
um lote de 1,2 mil hectares. O irmão dela, Luiz Alfredo Abreu, abocanhou
uma área do mesmo tamanho. O presidente da Campo, Emiliano Botelho,
também não foi esquecido: ficou com 1,7 mil hectares.
Dessa forma, um ambiente de agricultura
familiar mantido ao longo de quase meio século por um esquema de
produção de alimentos de forma ecologicamente sustentável foi remarcado
em glebas de latifúndio e entregue a dezenas de indivíduos ligados ao
governador Siqueira Campos. Entre elas também figuraram Dejandir
Dalpasquale, ex-ministro da Agricultura do governo Itamar Franco,
Casildo Maldaner, ex-governador de Santa Catarina, e o brigadeiro Adyr
da Silva, ex-presidente da Infraero. Sem falar numa trupe de políticos
locais, entre os quais brilhou, acima de todos, a atual presidente da
CNA.
O resultado dessa política pode ser
medido em números. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), a produção de soja em Campos Lindos
cresceu de 9,3 mil toneladas, em 1999, para 127,4 mil toneladas em 2007.
Um crescimento de 1.307% em apenas oito anos. O mesmo IBGE, contudo
revela a face desastrosa desse modelo de desenvolvimento. No Mapa da
Pobreza e Desiguldade, divulgado também em 2007, o município apareceu
como o mais pobre do País. Segundo o IBGE, 84% da população vivia da
pobreza, dos quais 62,4% em estado de indigência.
No meio das terras presenteadas por
Siqueira Campos a Kátia Abreu estava justamente o torrão de Reis, a
fazenda Coqueiro. Mas, ao contrário dos demais posseiros empurrados para
para as reservas do Cerrado, o agricultor não se deu por vencido. Tinha
a favor dele documentos de propriedade, um deles datado de 6 de
setembro de 1958 e originário da Secretaria da Fazenda de Goiás, antes
da divisão do estado. O documento reconhece as terras da família em nome
do pai, Mateus Reis, a partir dos recibos dos impostos territoriais de
então. De posse dos papéis, o pequeno agricultor tentou barrar a
desapropriação na Justiça. A hoje senadora partiu para a ofensiva.
Em 11 de dezembro de 2002, Kátia Abreu
entrou com uma ação de reintegração de posse em toda a área, inclusive
dos 545 hectares onde Reis vivia havia cinco décadas. Ela ignorou a ação
de usucapião em andamento, que dava respaldo legal à permanência dos
Reis na terra. Para fundamentar o pedido de reintegração de posse, a
então deputada alegou em juízo que Reis, nascido e criado no local,
tinha a posse da fazenda Coqueiro por menos de um ano e um dia,
providencial adequação ao critério usado na desapropriação.
Para comprovar o fato, convocou
testemunhas que moravam a mais de 800 quilômetros da área de litígio.
Incrivelmente, a Justiça de Tocantins acatou os termos da ação e
determinou que a expulsão da família de Reis da fazenda Coqueiro e dos
62 hectares recém-comprados. Ignorou, assim, que a maior parte das
terras utilizada há 50 anos ou, no mínimo, há mais de dois anos, como
ajuizava o documento referente ao processo de usucapião. Reis foi
expulso sem direito a indenização por qualquer das benfeitorias
construídas ao longo das cinco décadas de ocupação da terra, aí
incluídos a casa onde vivia a família, cisternas plantações (mandioca,
arroz e milho), árvores frutíferas, pastagens, galinhas, jumentos e
porcos.
A exemplo da Kátia Abreu, os demais
agraciados com as terras tomadas dos agricultores assumiram o
compromisso de transformar as terras produtivas em dois anos. O prazo
serviu de álibi para um ação predatória dos novos produtores sobre o
Cerrado e a instalação desordenada de empresas e grupos ligados ao
mercado da soja. Até hoje a questão do licenciamento ambiental da área
abrangida pelo Projeto Agrícola Campos Lindos não foi resolvida por
órgãos ambientais locais. Mas nem isso a senadora fez..
Signatário, com outros três colegas, de
um pedido de intervenção federal no Tocantins em 2003, justamente por
causa da distribuição de terras de Campos Lindos feita por Siqueira
Campos a amigos e aliados, o procurador federal Alvaro Manzano ainda
espera uma providência. “Houve uma inversão total do processo de reforma
agrária. A desapropriação foi feita para agradar amigos do rei.”
Há cinco meses, o agricultor Reis voltou
à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Ele luta pra
forçar o Tribunal de Justiça de Tocantins a julgar tanto a ação de
usucapião de 2000 como o pedido de liminar impetrado há seis anos para
garantir a volta da família, hoje acrescida de 23 netos, à fazenda
Coqueiro. “Não tem força no mundo, moço, que faça essa Justiça andar”,
reclama o agricultor. Ele atribuiu a lentidão à influência da senadora
no Judiciário local. Procurada por Carta Capital, Kátia Abreu não
respondeu ao pedido de entrevista.
Quatro anos atrás, a família Reis
conseguiu se alojar numa chácara de 42 hectares ocupada por um dos
filhos há dez anos. Lá, quase vinte pessoas vivem amontoadas em uma casa
de dois cômodos, feita de sapê e coberta de palha de babaçu em meio a
porcos, galinhas e cachorros. No terreiro coberto da residência,
infestado de moscas, as refeições são irregulares, assim como os
ingredientes dos pratos, uma mistura aleatória de arroz, mandioca,
pequi, abacaxi, feijão e farinha.
Toda vez que um motor de carro é ouvido
nas redondezas, todos se reúnem instintivamente nos fundos da casa,
apavorados com a possibilidade de um novo despejo. Cercado de filhos e
netos, Reis não consegue esconder os olhos marejados quando fala do
próprio drama. “Fizeram carniça da gente. Mas não vou desistir até
recuperar tudo de novo.”
Em 19 de junho, um dia após a última
visita de Reis à Câmara dos Deputados, o presidente da Comissão de
Direitos Humanos, Luiz Couto (PT-PB), encaminhou um ofício endereçado ao
Conselho Nacional de Justiça para denunciar a influência de Kátia Abreu
na Justiça do Tocantins e pedir celeridade nos processos de Reis. O
pedido somente agora entrou na pauta do CNJ, mas ainda não foi tomada
nenhuma medida a respeito. Nos próximos dias, corregedor do conselho,
Gilson Dipp, vai tornar público o relatório de uma inspeção realizada no
Tribunal de Justiça do Tocantins, no qual será denunciada, entre outros
males, a morosidade deliberada em casos cujos réus são figuras
políticas proeminentes no estado.
Há três meses, ao lado de uma irmão e um
filho, Reis voltou à fazenda Coqueiro para averiguar o estado das
terras depois da ocupação supostamente produtiva da senadora. Descobriu
que nem um pé de soja – nem nada – havia sido plantado no lugar.
“Desgraçaram minha vida e da minha família para deixar o mato tomar
conta de tudo”, conta Reis.
Com o auxílio de outros filhos, recolheu
tijolos velhos da casa destruída pelos tratores da parlamentar do DEM e
montou um barraco sem paredes, coberto de lona plástica e palha.
Decidiu por uma retomada simbólica da terra, onde reiniciou um roçado de
mandioca. Na chácara do filho, onde se mantém como chefe da família,
ainda tem tempo para rir das pirraças de uma neta de apenas 4 anos.
Quando zangada, a menina não hesita em disparar, sem dó nem piedade, na
presença do avó: “Meu nome é Kátia Abreu”.
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