O
Paraguai espera ser reintegrado ao Mercosul na reunião de cúpula do dia
17 de janeiro, um ano e meio após ter sido expulso em repúdio à queda
do presidente Fernando Lugo. Um golpe de Estado que favoreceu,
principalmente, os verdadeiros chefes do país: os senhores da soja
Por Maurice Lemoine, em Le Monde Diplomatique
Em 24 de agosto de 2013, um vento gelado
dilacerava o rosto. Divididas em quatro “brigadas”, 108 famílias
reocuparam a terra da localidade conhecida como Naranji To, de onde
haviam sido expulsas quatro vezes pelas forças da ordem. Sobre uma
coberta, armaram-se barracas precárias em meio a trouxas de roupa. “A
partir de amanhã, plantaremos culturas de subsistência”, anunciou o
dirigente Jorge Mercado, com uma segurança pouco convincente. A força
das lembranças ainda transparecia em seu rosto como uma onda. A última
expulsão havia sido particularmente violenta: “Os policiais queimaram 84
barracas! Roubaram animais, aves, mataram os porcos”.
Em 1967, o ditador Alfredo Stroessner
deu essas terras de mão beijada a um alemão, Erich Vendri, as quais
foram posteriormente “herdadas” por seus filhos Reiner e Margarita. Mas
elas não deixaram de pertencer ao Estado. “Verificamos junto às
instituições responsáveis o que é legal e o que foi vendido ou adquirido
com irregularidades”, explica Mercado. “Temos anos de experiência em
recuperar, pedaço por pedaço, o território paraguaio.” Enquanto disserta
sobre a cobiça dos terratenientes (latifundiários) e dos sojeros (produtores
de soja), um lençol de trevas cobre o acampamento. Reunidos ao redor de
braseiros incandescentes, os camponeses tomam seu mate, deixando o
calor da bebida penetrá-los lentamente.
Dois dias depois, com a brutalidade costumeira, a polícia atacou novamente.
Nesse país de 6,7 milhões de habitantes,
cerca de 300 mil famílias de camponeses são desprovidas de terras. Sem
remontar às calendas paraguaias, foi no fim do século XIX que o modelo
de latifúndio se consolidou. Sob Stroessner (1954-1989), superfícies
consideráveis de “terras livres” pertencentes ao Estado e legalmente
destinadas à reforma agrária, como Naranji To, foram repartidas entre
amigos, cúmplices, militares, funcionários. A partir da década de 1970,
produziu-se uma revolução maior: vinda dos estados do Sul do Brasil, a
agricultura mecanizada passou a fronteira com sua vedete, a soja.
Um espasmo agitou os campos. Os pequenos
e médios produtores – que historicamente alimentavam o país –
atrapalhavam a expansão desse setor voltado para a exportação. Ora,
existem diversas formas de perseguir os que impedem o plantio intensivo.
“A mais simples é comprar a terra deles”, comenta Luis Rojas.
“Oferecemos a um camponês um valor que ele jamais viu em sua vida. Ele
imagina que é uma fortuna, vende o lote, vai para a cidade, gasta tudo
em três ou quatro meses e engrossa os cinturões de miséria, porque fica
sem trabalho”, completa.
E assim a soja ampliou suas fronteiras.
Comunidades inteiras migraram pelas
secas causadas pelo desmatamento. Além disso, a aspersão aérea de
pesticidas afetou as culturas limítrofes, envenenou cursos de água,
obrigou os animais a percorrer quilômetros em busca de pasto, se
arrastando pelos últimos tufos. Vômitos, diarreias, dores de cabeça.
Impotentes, os vizinhos venderam suas porções de terra a preço de
banana.
E assim a soja engoliu vilas e vilarejos.
Em 1996, sua variedade transgênica, a
semente “roundup ready”, da Monsanto, surgiu na Argentina, de onde
travou uma guerra imperialista, sem aprovação do governo, contra o
Brasil, a Bolívia e o Paraguai, reforçada pelos pesticidas mortíferos
para o meio ambiente.1
E assim a soja inundou planícies e savanas – maré implacável.
Ilhas irredutíveis tentam fazer valer
seus direitos. “Com o pretexto de atender a suas reivindicações, o
governo desloca essas pessoas, que são enviadas para lugares de
florestas que precisam ser desbravados, a 80 quilômetros de qualquer
estrada, sem posto de saúde, sem nada”, critica Perla Alvarez, da
Coordenação de Mulheres Rurais e Indígenas (Conamuri). E quando alguns
desses deslocados se organizam para retomar as terras férteis que lhes
foram confiscadas, o agronegócio solta os cachorros. “Desde o início do
período democrático, em 1989, até hoje, registraram-se 116 casos de
assassinato ou desaparecimento de dirigentes ou militantes de
organizações camponesas”, lembra Hugo Valiente, da Coordenação de
Direitos Humanos do Paraguai (Codehupy). Além dos agentes de Estado, os
seguranças particulares dos latifundiários, os matones, atuam sob total impunidade.
E a soja avança, avança. Soja sem fim.
Influentes, organizados, incrustados no
coração dos grandes partidos tradicionais – a Associação Nacional
Republicana (ANR, ou Partido Colorado, no poder de 1946 a 2008, e de
volta em 2013) e o Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA) –, os terratenientes administram
empresas de trens, possuem suas próprias pistas de aterrissagem, seus
próprios aviões. O grupo do brasileiro Tranquilo Favero, o “rei da
soja” (ver box), possui 140 mil hectares em oito departamentos
(Alto Paraná, Canindeyú, Itapúa, Caaguazú, Caazapá, San Pedro, Central e
Chaco), nove empresas (tratamento e distribuição de sementes,
elaboração e importação de agroquímicos e fertilizantes, financiamento
de produtores, fornecimento de máquinas e combustíveis etc.) e um porto
particular do Rio Paraná – via fluvial chave para grandes projetos de
infraestrutura no continente. Os oito membros da Central Nacional de
Cooperativas (Unicoop) controlam mais de 305 mil hectares. O grupo
Espírito Santo se contenta com apenas 115 mil. Em resumo, segundo o
Censo de 2008, 2% dos proprietários monopolizam 85% das terras do
Paraguai.
De seu lado, as multinacionais aproveitam. As norte-americanas Cargill (vinte silos, uma fábrica, três portos particulares),2 ADM
Paraguay Saeca (trinta silos, seis portos particulares) e Bunge (cinco
silos com capacidade total de 230 mil toneladas), além da Louis Dreyfus
(França) e Noble (Hong Kong), obtêm altos benefícios com a soja e
controlam cerca de 40% de todas as exportações do país. BASF e Bayer
(alemãs), Dow (Estados Unidos), Nestlé (Suíça), Parmalat (Itália) e
Unilever (Países Baixos, Grã-Bretanha), para citar algumas, completam
esse cenário.3 E convém mencionar um detalhe: mesmo gerando
com suas atividades 28% do PIB, latifundiários e transnacionais
contribuem com apenas 2% das receitas fiscais do país.4
Aos buzinaços, filas intermináveis de
máquinas agrícolas e caminhões invadem as estradas, enquanto a soja
avança sem fim sobre as terras vermelhas e pouco férteis da região
oriental, inclusive a dos ganaderos – criadores de 14 milhões
de cabeças de gado na rústica região do Chaco. As superfícies invadidas
pelo “ouro verde” passaram de 1,5 milhão de hectares em 1993 a 3,1
milhões hoje, e fazem do Paraguai o quarto maior exportador mundial de
soja. Cerca de 60% do grão produzido parte rumo à Europa para a
alimentação de gado e produção de biocombustíveis.
Mobilização sem terra
Os camponeses, contudo, não assistem
passivos a esse processo. “Já recuperamos muitas terras. Mais de
trezentos de nossos companheiros estão em ocupações nas zonas de Itapúa e
Caazapá”, explica Esther Leiva, coordenadora nacional da Organização de
Luta pela Terra (OLT). Entre 1990 e 2006, período em que ocorreram 980
conflitos por terra, camponeses realizaram 414 ocupações, a forma de
pressão mais utilizada para “sensibilizar” as autoridades. Chamadas de
“invasões” pelos proprietários e pela mídia, as ocupações resultaram em
366 expulsões e 7.346 detenções.5 Mas, analisa Dominga
Noguera, coordenadora das organizações sociais de Canindeyú, “apenas
nesse departamento, 130 hectares foram reconquistados”.
Nesses campos de caminhos pouco transitáveis, apenas motos de baixa cilindrada chegam às colônias agrícolas, os asentamientos [assentamentos].
Aqui, no coração do departamento de Itapúa, no Asentamiento 12 de
Julio, recorda-se como, em 1996, há dezessete anos, setenta pessoas
foram encarceradas durante seis meses por tentar ocupar à força o
“sítio” de 1.600 hectares pertencentes a Nikolai Neufeld, um menonita
alemão.6 Nesse país desprovido de cadastro fundiário, pacotes
de títulos de propriedade fraudulentos foram entregues por um sistema
judiciário sob controle da cúpula de magistrados ligados à ditadura de
Stroessner e ao Partido Colorado. Um caos administrativo, a ponto de uma
terra possuir três ou quatro títulos de propriedade diferentes. A soma
dos títulos de terra no Paraguai faria o país ter dois andares…
Em 2005, os habitantes do Asentamiento
12 de Julio retomaram a luta com o apoio da OLT e da Mesa de Coordenação
Nacional de Organizações Camponesas (MCNOC). Ocuparam quatro vezes
essas terras, e nas quatro tentativas foram violentamente despejados
pela polícia, pelos militares e pelos matones, sob os olhos de enviados especiais dos meios de comunicação da oligarquia – ABC Color,7La Nación, Última Hora–,que assistiram de camarote ao incêndio dos ranchos desses “criminosos” de pés descalços.
O combate, porém, trouxe frutos. Cerca
de 230 famílias vivem hoje legalmente nessas terras, onde plantam
mandioca, milho, feijão, batata-doce, amendoim e gergelim. Em 2009, o
Instituto Nacional de Desenvolvimento Rural e da Terra (Indert), o órgão
encarregado da reforma agrária, de fato recomprou a terra de Neufeld,
que desde então foi condenado a cinco anos de prisão: entre 2007 e 2011,
ele vendeu terras que não lhe pertenciam a imigrantes alemães por 14
milhões de euros. Para explicar esses felizes desdobramentos, Magno
Álvarez, robusto dirigente da comunidade, observa que, “em 2009, as
tensões tinham diminuído, era o período do presidente [Fernando] Lugo”.
No dia 20 de abril de 2008, cansados de
61 anos de autoritarismo do Partido Colorado, 40,8% dos eleitores
depositaram suas esperanças na figura desse antigo “padre dos pobres”,
socialmente muito engajado. Na ausência de uma base política organizada,
Lugo foi levado ao poder pela Aliança Patriótica pela Mudança (APC),
uma coalizão de movimentos sociais e oito partidos, entre os quais se
destacava o Partido Liberal, formação conservadora incapaz até aquele
momento de enfrentar a dominação do Partido Colorado.8 O casamento durou pouco.
Próximo dos governos progressistas da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (Alba),9 Lugo
levou adiante uma política moderada. Ainda assim, foi demais para a
coalizão: ele recusou a instalação de uma base militar norte-americana
em Mariscal Estigarribia (Chaco); negou a concessão de subsídios de
energia no valor de US$ 200 milhões à multinacional canadense Rio Tinto
Alcán, que queria instalar uma fábrica de alumínio nas margens do Rio
Paraná; aumentou os investimentos sociais; permitiu aos pobres o acesso
gratuito a hospitais; evocou uma reforma agrária e expressou sua
simpatia em relação aos movimentos camponeses, que, com esse apoio
implícito, multiplicaram as ocupações e manifestações. Depois de
apoiá-lo por oportunismo eleitoral, o Partido Liberal do vice-presidente
Federico Franco voltou-se contra o chefe de Estado. De mãos dadas com o
adversário colorado de antes (ambos os partidos formam a
maioria absoluta no Congresso), jogou abertamente em prol da
desestabilização do governo Lugo.
Mais um golpe de Estado
Apoiada pela imprensa, a União de
Grêmios da Produção (UGP) deu o alarme. O conflito se agravou quando
esse poderoso lobby reivindicou a introdução de variedades geneticamente
modificadas de milho, algodão e soja. “O ministro da Agricultura, o
liberal Enzo Cardozo, agiu em total conformidade com os interesses da
Monsanto, Cargill e Syngenta. Era literalmente funcionário dessas
empresas e, ao mesmo tempo, porta-voz da UGP”, lembra Miguel Lovera,
então presidente do Serviço Nacional de Qualidade e Saúde dos Vegetais e
Sementes (Senaves). Contudo, a autorização não foi acordada: a ministra
da Saúde, Esperanza Martínez, e o de Meio Ambiente, Oscar Rivas, assim
como Lovera pelo Senaves se opuseram. O ABC Color desencadeou
uma campanha violenta contra eles. E, pela milésima vez, o
vice-presidente Franco evocou a destituição de Lugo por um “julgamento
político” (o equivalente a um impeachment). Faltava apenas encontrar um pretexto.
A 400 quilômetros a nordeste de
Assunção, próximo a Curuguaty – cidade de três avenidas estreitas, uma
dezena de vias perpendiculares e, em cada esquina, um banco onde é
depositado o dinheiro dos sojeros –, na localidade chamada
Marina Kue, alguns “sem-terra” ocupam pacificamente uma propriedade
grilada por Blas Riquelme, ex-presidente do Partido Colorado (que
representou no Senado de 1989 a 2008) e proprietário de 70 mil hectares
de terras da empresa Campos Morombí. Ninguém ignora que os cerca de mil
hectares disputados em Marina Kue pertenceram ao Exército paraguaio até o
fim de 1999 e que, em 4 de outubro de 2004, o Decreto n. 3.532
declarou-os de “interesse social” e transferiu-os ao Indert. Entretanto,
no dia 15 de junho de 2012, 324 policiais fortemente armados irromperam
o local para desalojar – pela sétima vez em dez anos! – os cerca de
sessenta camponeses presentes no acampamento.
O que aconteceu na sequência? “Queríamos
a terra e tivemos uma guerra”, suspira Martina Paredes, membro da
Comissão de Vítimas de Famílias de Marina Kue, que perdeu um irmão nos
conflitos. Nesse 15 de junho, após um primeiro cessar-fogo, eclodiu um
tiroteio durante o qual onze camponeses e seis membros das forças da
ordem perderam a vida. Ainda hoje, ninguém sabe quem iniciou o conflito
armado. “Falei com alguns policiais, e eles sabem tanto quanto nós”,
confidencia Martina. Um dos dirigentes de Marina Kue, Vidal Vega,
anunciou que deporia sobre a presença de infiltrados e matones de
Campos Morombí nos locais do massacre. Mas foi assassinado antes disso,
em 16 de dezembro de 2012. Além disso, a gravação realizada por um
helicóptero da polícia que sobrevoava permanentemente a região
desapareceu de forma misteriosa.
A presença de mulheres e crianças no
acampamento abala qualquer credibilidade da hipótese de uma emboscada
orquestrada pelos camponeses contra as forças da ordem. Isso não
impediu, contudo, que, no dia 22 de junho de 2012, Lugo, acusado de
atiçar a violência contra os grandes proprietários de terra, fosse
destituído de seu posto por um “julgamento político” de 24 horas,
quando, de acordo com o artigo 225 da Constituição, ele teria o prazo de
cinco dias para organizar sua defesa. Em outras palavras, isso se chama
golpe de Estado.
Um clássico latino-americano
Assim que Franco subiu ao poder, seu
governo desativou imediatamente a comissão independente nomeada para
investigar os acontecimentos de Marina Kue com a assistência da
Organização dos Estados Americanos (OEA). E não demorou sequer uma
semana para, por decreto e sem nenhum procedimento técnico, o algodão
geneticamente modificado ser autorizado. Durante os meses seguintes,
sete outras variedades transgênicas de milho e soja também foram
liberadas.
Segundo a fórmula consagrada, as
eleições de 22 de abril de 2013 marcaram o “retorno à normalidade” do
Paraguai, que após o golpe foi excluído do Mercosul, da União das Nações
Sul-Americanas (Unasul) e da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e
do Caribe (Celac). Quando efetivamente assumiu as funções de chefe de
Estado no dia 15 de agosto, em nome do Partido Colorado, Horacio Cartes,
o homem mais rico do país – que tem por principal conselheiro o chileno
Francisco Cuadra, ex-ministro e porta-voz de Augusto Pinochet –, se
deslocou do Palácio do Governo à Catedral a bordo de um Chevrolet
Caprice branco conversível utilizado por Stroessner em seu tempo. Dando o
tom de seu futuro mandato durante um almoço de trabalho do qual
participaram 120 (La Nación) ou 400 (ABC Color)
“chefes de empresas nacionais e estrangeiras entusiastas”, prometeu que
não toleraria que “os investidores fossem maltratados pelos funcionários
públicos.
Dois dias depois, provocando torrentes de indignação na mídia, cinco seguranças particulares da fazenda Lagunita10 foram
executados pelo misterioso Exército do Povo Paraguaio (EPP), um pequeno
grupo – e não guerrilha – ao qual se atribuem 31 sequestros e
assassinatos desde 2006 em zonas de difícil acesso dos departamentos de
Concepción e San Pedro, os mais pobres do país. A investigação revela
que uma das vítimas, Feliciano Coronel Aguilar, um suboficial da
polícia, dirigia, em seu “tempo livre”, a empresa de segurança San
Jorge, encarregada da segurança da fazenda. De seu lado, no Facebook, o
EPP afirma que seus alvos “fazem parte de um grupo parapolicial que
matou vinte camponeses”, o que confirma implicitamente o ex-deputado
colorado Magdaleno Silva: “É preciso investigar a verdadeira atividade
da empresa de segurança San Jorge”.11 O padre Pablo Caceres,
da diocese de Concepción, afirma: “Essas pessoas que são assassinadas,
esses seguranças particulares, que nos dizem ser pobres trabalhadores,
eram na realidade matones”.12
Em abril de 2010, o presidente Lugo,
regularmente acusado de ter ligações com o EPP, havia decretado estado
de exceção durante um mês para tentar erradicá-lo – sem resultado – em
quatro departamentos. No dia 22 de agosto, com uma velocidade meteórica,
o Congresso aprovou uma lei que permite a Cartes ordenar operações
militares sem a necessidade de, antes, declarar estado de exceção. A
polícia nacional passou ao controle operacional dos militares, que se
deslocam pelos departamentos de San Pedro, Concepción e Amambay,
apoiados por helicópteros e tanques blindados. Tudo isso para acabar com
um movimento de oposição armada cujos efetivos não chegam a constituir
duas equipes de futebol?
Na comunidade de Tacuatí Poty, para não
se ater a um único exemplo, reina uma atmosfera de fim de mundo. Nesse
assentamento de setecentas famílias encurraladas pela soja, brigou-se
por tudo: primeiro pela terra, depois pelo posto de saúde, pela escola, o
colégio, a água potável, a estrada. A oito quilômetros dali, um rico
latifundiário, Luis Lindstrom, foi sequestrado entre junho e setembro de
2008 pelo EPP, e liberado mediante o resgate de US$ 130 mil, depois
assassinado no dia 31 de maio de 2013 por dois franco-atiradores
supostamente pertencentes à “guerrilha”. Acusado de constituir um dos
campos de base da subversão, Tacuatí Poty vive o inferno das revistas
noturnas e sem mandado realizadas por militares, além de intimidações,
provas plantadas pela polícia nos quartos daqueles que ela deseja
incriminar e detenções arbitrárias.
“As pessoas estão com medo. Não se pode
confiar na justiça nem nas instituições que deveriam proteger nossos
direitos. Os acusados são pais de família, lutadores que se levantam às 5
da amanhã para trabalhar. Como se fosse por acaso, eles são também os
dirigentes. No fundo, o problema são as nossas terras. Em nossa
ignorância, é o que percebemos. Ao acabar com os dirigentes, eles acham
que vão acabar conosco”, alarma-se Victoria Sanabria.
Trata-se, em resumo, de um grande
clássico latino-americano. Uma ferida mal curada termina por
inflamar-se. Grupos, pequenos ou grandes, condenáveis ou não,
radicalizam-se. O poder dito “democrático” grita de forma ameaçadora e,
lançando ordens de capturar presumidos culpados, criminalizam em
primeiro lugar… os movimentos sociais – em benefício, no caso do
Paraguai, dos sojeros.
BOX:
“Brasiguaios”: desprezados ou adorados
Cerca de 19% do território nacional
paraguaio, ou 7,7 milhões de hectares (32% do total das terras aráveis),
estão nas mãos de proprietários estrangeiros. E cerca de 4,8 milhões de
hectares pertencem a brasileiros, principalmente nas zonas fronteiriças
do Alto Paraná, Amambay, Canindeyú e Itapúa. É o que mostra o estudo
coordenado por Marcos Glauser, da Organização BASE Pesquisas Sociais, e
Alberte Alderete, do Serviço Jurídico Integral para o Desenvolvimento
Agrário (Seija), realizado com base no Censo Agrário 2007-2008.
Dois períodos favoreceram a chegada dos
brasiguaios. As leis que permitem a venda de terras públicas foram
aprovadas após a guerra contra a Tríplice Aliança, que, de novembro de
1864 a março de 1870, opôs o Paraguai à coligação composta por Brasil,
Argentina e Uruguai – com consequências desastrosas para o Paraguai.
Logo depois, nos anos 1970, marcados pela queda dos preços no mercado
fundiário, tornou-se tão fácil desmatar áreas selvagens que Alfredo
Stroessner não tinha nada a recusar a seus homólogos dos países
vizinhos.
O cenário seguiria igual até a
“ditadura” ser substituída pela “ditamole”, momento em que os colonos
brasileiros, com a bagagem da agricultura mecanizada, introduziram a
soja no país vizinho. Esses colonos foram os pioneiros das empresas de
agronegócio mais importantes no Paraguai e entraram em conflito direto
com os camponeses locais.
Em matéria de “domesticação” das
populações, os recém-chegados haviam feito escola em seu país de origem:
“A grande maioria chegou com a mentalidade de ‘fronteira’, para fazer
fortuna facilmente, e se impôs por meio da violência, abalando costumes,
normas, regras ambientais. Sem mencionar as leis trabalhistas”,
denuncia Miguel Lovera, presidente do Serviço Nacional de Qualidade e
Saúde dos Vegetais e Sementes (Senaves). Apesar de empregar pouca mão de
obra em função da mecanização da agricultura, esses colonos – cujas
propriedades variam de cerca de 100 hectares até os 140 mil hectares do
“rei da soja” Tranquilo Favero – não raro infligem a seus trabalhadores
regimes de semiescravidão. “Eles possuem seus próprios seguranças, mas é
comum que usem camponeses locais como matones [guardas
particulares] em troca de um pouco de dinheiro”, conta Jorge Lara
Castro, ministro de Negócios Estrangeiros do ex-presidente Lugo. A
coordenadora nacional da Organização da Luta pela Terra (OLT), Esther
Leiva, é mais direta: “Se você passar pelas terras deles, eles podem
facilmente atirar”.
“Entre eles [os brasiguaios], há de
tudo”, constata o economista Luis Rojas. “Brasileiros ‘puro sangue’,
naturalizados, filhos da segunda e terceira gerações. Mas tenham ou não
documentos paraguaios, todos mantêm uma forte relação com o país de
origem”, explica. Em distritos onde todas as rádios e canais de
televisão transmitem em português, os brasiguaios se comunicam nesse
idioma, possuem suas próprias escolas, igrejas e permanecem
economicamente ligados ao país vizinho. “Não vemos isso com bons olhos”,
confessa Isebiano Diaz, camponês de um assentamento do departamento de
Caazapá, resumindo o sentimento de sua comunidade e de outras também.
“Eles enchem a cabeça das pessoas com ideias estranhas”, completa.
Xenofobia? “Há rejeição”, admite Rojas.
“Mas é muito complexo: enquanto os camponeses são abandonados, os
brasiguaios são presentes no meio dos negócios que exploram.” De fato,
como tal, a comunidade brasileira se envolve pouco com os partidos
políticos, mas faz forte pressão política quando considera que seus
interesses são afetados ou ameaçados. E quase sempre obtém ganho de
causa, pelo apoio incondicional dos círculos dirigentes. “A médio prazo,
seus territórios se converterão em encraves brasileiros em território
paraguaio”, observa Alderete. Se é que já não é assim… (M.L.)
-
Maurice Lemoine é jornalista e autor de “Cinq Cubains à Miami ( Cinco cubanos em Miami)”, Dom Quichotte, Paris , 2010.
Ilustração: Mello
-
1 Diante do “fato consumado”, o governo paraguaio legalizou sem muitos problemas a soja transgênica em 2004.
2 A Cargill atualmente está no centro de
um escândalo na Colômbia, onde é acusada de ter se apropriado de
maneira fraudulenta de 52 mil hectares que o Estado havia designado para
camponeses pobres.
3 Luis Rojas Villagra, Actores del
agronegocio en Paraguay [Atores do agronegócio no Paraguai], BASE
Investigaciones sociales, Assunção, 2012.
4 E’a, Assunção, 19 set. 2013.
5 “Informe de derechos humanos sobre el
caso Marina Kue” [Relatório de direitos humanos sobre o caso Marina
Kue], Coordenadoria de Direitos Humanos do Paraguai, Assunção, 2012.
6 Membros de uma congregação evangélica
de origem europeia (essencialmente alemã) que emigrou para o Paraguai na
década de 1920. Formado por cerca de 30 mil pessoas, o grupo assegura
mais de 80% da produção leiteira nacional.
7 Aldo Zuccolillo, proprietário do ABC Color, é o principal sócio da Cargill no Paraguai.
8 Ler Renaud Lambert, “Au Paraguay,
l’‘élite’ aussi a voté à gauche” [No Paraguai, a “elite” também votou na
esquerda], Le Monde Diplomatique, jun. 2008.
9 Antígua e Barbuda, Bolívia, Cuba,
Equador, Honduras (até o golpe de Estado de 2009), Nicarágua, República
Dominicana, São Vicente e Granadinas, Venezuela.
10 Fazenda dedicada à criação de gado.
11 E’a, 21 ago. 2013.
12 Radio Ñanduti, Assunção, 6 set. 2013.
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