Em Montevidéu, Luciana Gaffrée
Com Frei Xavier Plassat
O Estado Brasileiro terá que escolher entre a dignidade e a propriedade
Em um país onde o principal setor de trabalho
escravo é a pecuária, em diálogo com A Rel, Frei Xavier Plassat, da
Comissão Pastoral da Terra (CPT), revela os motivos pelos quais a
bancada ruralista é contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC)
438/2001, que prevê o confisco de terras de escravagistas. Afirma que a
bancada ruralista em sua política desenvolvimentista caminha não para a
abolição do trabalho escravo, mas sim para a abolição do conceito de
trabalho escravo.
-Quando foi feita a primeira denúncia de trabalho escravo no Brasil?
-A
primeira denúncia foi feita em 1971, em Mato Grosso, por Dom Pedro
Casaldáliga, onde trabalhadores estavam tentando fugir de situações de
verdadeiro cativeiro, sendo tratados pior do que animal.
De
70 a 95, período de 25 anos, os vários casos de trabalho escravo se
concentraram na região da Amazônia brasileira, principalmente no
Maranhão, Pará e Mato Grosso, sendo levantados e denunciados pela CPT, mas enfrentando o negacionismo por parte das autoridades do país.
Em 1997, a CPT
construiu uma campanha nacional de combate ao trabalho escravo e
através de pressões em organismos internacionais, entre eles a
Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a ONU,
dobrou o governo brasileiro que, em 2005, se viu obrigado a admitir a
realidade da existência da “escravidão contemporânea”.
-E o que seria a “escravidão contemporânea”?
-A
escravidão contemporânea não se apresenta mais nas formas exatas da
escravidão colonial, sendo difícil ver um trabalhador acorrentado para
trabalhar. O que há são trabalhadores explorados de uma forma tão
exagerada que deixam de ser considerados pessoas. Esse é o elemento
essencial do debate.
A
questão da dignidade, que não está tão distante da questão da
liberdade. Uma pessoa, a quem você nega as condições mínimas de
dignidade, não tem nenhuma liberdade.
Claro
que tem a demanda e a oferta. Existem trabalhadores em situação de
tamanha vulnerabilidade, com uma falta tão grande de alternativas de
subsistência, que estão dispostos a aceitar qualquer oportunidade de
trabalho por ser, para eles, melhor do que nada.
Por
isso, estamos cobrando do Estado uma atitude mais ativa na prevenção da
vulnerabilidade, na integração dos trabalhadores resgatados para não
retornarem ao que faziam. Atualmente, um trabalhador resgatado é
devolvido para a mesma situação que o levou a uma migração forçada, para
buscar um serviço qualquer e se sujeitar a qualquer condição. Se não se
cuida desse aspecto, não se corta o círculo vicioso do trabalho
escravo.
-Qual é o principal setor de trabalho escravo?
-O principal setor de trabalho escravo é a pecuária. O segundo é a cana de açúcar.
De 2003 a 2012 foram libertadas no Brasil 40.280 pessoas. Na pecuária
foram 11.400 pessoas, 28%. Na cana, 10.600 pessoas, 26%. Em outras
lavouras, como o café, o algodão e a soja, 7.150 pessoas, 18%.
E em quarto lugar o carvão, 3.148 pessoas, 8%.
Além
de sabermos que resgatamos mais de 40 mil pessoas desde 2003, uma média
de 4 mil pessoas por ano, ainda não sabemos se isso representa 30%, 40%
ou quanto do total de trabalhadores ainda hoje em situação de trabalho
escravo.
A
geografia do trabalho escravo hoje é muito mais complexa, existindo em
todos os estados brasileiros, por exemplo, em São Paulo, Santa Catarina e
Rio Grande do Sul. Em São Paulo temos o trabalho escravo nas oficinas
de confecção, que explora mão de obra boliviana e peruana. No Mato
Grosso do Sul encontramos nos canaviais milhares de indígenas que foram
resgatados.
-E o Estado brasileiro também se aproveita dessas condições de escravidão?
-Para
responder à sua pergunta, podemos mencionar o trabalho escravo
encontrado nas grandes obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC),
obras de construção civil, que teoricamente são de responsabilidade do
Estado. Claro que é uma agravante, quando nessas obras encontramos
trabalho escravo. É sabido que em grandes empreendimentos financiados
pelo Banco do Brasil, pelo BNDES e pela Caixa Econômica Federal, é encontrado trabalho escravo. E aí se verificam as contradições da máquina pública.
-E o que o senhor poderia nos dizer em termos de avanços no combate?
-Hoje, por exemplo, há o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM),
uma força tarefa especial de combate ao trabalho escravo. E a Lista
Suja do Trabalho Escravo, criada para tornar público o nome daqueles que
se aproveitam dessa prática e assim cortar o seu acesso aos mercados e
aos financiamentos, uma vez que as empresas se comprometem a cortar
qualquer negócio com fornecedores que estiverem envolvidos com trabalho
escravo.
-Em relação às convenções internacionais, como se define o trabalho escravo contemporâneo?
-Uma
das convenções que definem o trabalho escravo é a da OIT, sendo a
principal delas a Convenção 29 (1930), colocando o acento especialmente
sobre a característica de coerção à liberdade do trabalhador, em seu
impedimento de ir e vir. Isso levou vários magistrados a negarem a
qualificação de trabalho escravo quando as situações não apresentassem
uma clara coerção à liberdade.
Em
dezembro de 2003, o Brasil aprovou uma lei muito avançada e reformou o
artigo 149 do Código Penal Brasileiro, onde o trabalho escravo é
definido como uma situação na qual não somente a liberdade do sujeito
precisa ser negada, mas também a sua dignidade.
Isso se faz através da distinção de quatro situações que levam a qualificar a escravidão contemporânea, que são: 1) a submissão ao trabalho forçado, uso da coerção contra a pessoa, restringindo a sua liberdade de ir e vir; 2) a submissão a jornadas de trabalho exaustivas, de natureza física ou mental, que por extensão ou intensidade, causam esgotamento das capacidades da pessoa; 3) a sujeição a condições degradantes, onde o trabalhador seja tratado como coisa e não como pessoa, 4) a restrição da locomoção do trabalhador em razão de uma dívida contraída com o empregador,
na qual o trabalhador é recrutado mediante bonitas promessas, recebendo
adiantamentos, e quando chega ao local de trabalho, descobre que tudo
que lhe foi adiantado e tudo o que ele vai precisar ainda para se
alimentar, se alojar, e suas ferramentas de trabalho, vai lhe ser
descontado como dívida, ficando preso por conta dessa dívida.
-Para ser considerado trabalho escravo moderno precisam se dar essas quatro características?
-Não.
Cumprindo apenas uma já é o bastante para ser considerado trabalho
escravo. A redação do artigo 149 do Código Penal é clara a esse
respeito.
-E qual a relevância da PEC do Trabalho Escravo, a PEC 438/2001?
-Sua relevância está em prever que uma propriedade, onde for flagrada prática do trabalho escravo, possa ser expropriada, confiscada. Não
é desapropriação, com indenização, mas sim expropriação, sem
indenização. A propriedade será confiscada para ser atribuída ao domínio
público e servir para a reforma agrária.
Só
que a bancada ruralista, por não querer que as terras sejam
expropriadas, encontrou um jeito de aprovar a PEC, mas alterando a
definição do conceito de trabalho escravo. E retiraram da definição
todos os elementos que não fossem a repetição da Convenção 29 de 1930 da
OIT, na qual a submissão ao trabalho forçado é a única definição do
trabalho escravo. Daí o retrocesso.
-Das quatro definições, só uma passaria a definir trabalho escravo?
-Exatamente. É por isso que o Projeto de Lei de autoria do deputado Moreira Mendes (PSD/RO)
é um retrocesso, pois só entenderá como trabalho escravo quando a
pessoa estiver sob ameaça, coerção, presa. Todos os outros elementos que
dizem respeito a condições degradantes, a jornadas exaustivas, e que na
realidade contemporânea são de fato a pior e a principal forma de
escravização, não serão considerados.
O que os ruralistas querem, de fato, é a abolição do conceito de trabalho escravo e não a abolição do trabalho escravo.
-E como o governo se posiciona?
-A
bancada parlamentar do governo não tem o combate ao trabalho escravo
como uma prioridade. E como sabemos, o peso do agronegócio no Brasil tem crescido fortemente, por representar uma parte muito importante do superávit comercial do Brasil.
O
Estado também não soube se posicionar com relação ao Código Florestal.
Não soube impor uma linha mínima de preservação do meio ambiente e
tolerou que fosse incluída na nova lei do código florestal uma forma de
legitimar os crimes anteriores de quem tinha violado a lei como se fosse
tudo perdoado, gerando também um retrocesso.
-E o embate simbólico é esse?
-Claro.
Porque ninguém vai dizer que a propriedade é mais importante que a
dignidade. Ainda mais agora que a relatora da ONU, Guinara Shahinian, deu apoio à PEC 438/2001, do Trabalho escravo prevendo o Confisco da Terra,
dizendo ser uma jurisdição avançada do combate à escravidão
contemporânea. Os deputados se sentiram um pouco acuados, e não podiam
dizer francamente que são contra o confisco da terra onde se pratica o
trabalho escravo, ninguém vai confessar isso publicamente.
E, finalmente, há
uma conexão entre o código florestal, a demarcação de terras indígenas e
o trabalho escravo, uma conexão altamente reveladora da cobrança do
agronegócio ao Estado.
Os
ruralistas não querem entraves à liberdade de empreender um
“progresso”, e para isso geram “retrocesso” em direitos humanos. E hoje o
Estado tem que escolher entre a dignidade e a propriedade.
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