Os
sistemas produtivos do Cerrado “estão pautados em um modelo tecnológico
que, além de desmatar grandes extensões de vegetação nativa e gerar
poucos empregos, utiliza grandes quantidades de insumos químicos”, diz a
coordenadora administrativa da Rede Cerrado
As monoculturas que invadem o cerrado
brasileiro são hoje o principal entrave à conservação do bioma. As
plantações de soja, algodão, cana-de-açúcar e eucalipto já contribuíram
para devastar metade dos dois milhões de km² do bioma, e “22 milhões de
hectares já estão ocupados por cultivos agrícolas”, assinala a
pesquisadora Lara Montenegro em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
Em sua avaliação, a situação ambiental
do bioma é um reflexo do “entendimento” do governo federal em relação à
área. “O cerrado é a principal frente para a expansão do agronegócio” e é
através da expansão agrícola no ecossistema que o governo pretende
aumentar o “PIB e o superávit primário”, lamenta. Segundo Lara, “as
linhas de crédito do Ministério da Agricultura para os grandes
produtores de commodities são absurdamente superiores àquelas oferecidas
pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário aos agricultores familiares,
que são responsáveis por 70% dos alimentos que chegam à mesa dos
brasileiros”.
Além da cana-de-açúcar, que abastece o
setor sucroalcooleiro, o cerrado brasileiro está sendo invadido pela
plantação de pinus e eucalipto. Conforme a pesquisadora, somente em 2010
mais de “6,5 milhões de hectares” do bioma eram destinados à
silvicultura. Entretanto, apesar da constatação dos impactos ambientais,
como a exaustão de nascentes e mananciais, “os Planos Setoriais de
Mitigação e de Adaptação às Mudanças Climáticas, que estão sendo
desenvolvidos pelo governo federal, preveem a ampliação desses plantios
florestais em três milhões de hectares até 2020”, para substituir o
carvão nativo.
Lara Montenegro é assessora técnica do Instituto Sociedade, População e Natureza – ISPN
e coordenadora administrativa da Rede Cerrado. Faz parte da equipe de
coordenação do VII Encontro e Feira dos Povos do Cerrado, ao lado de
representantes de outras organizações. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a situação e as demandas para a conservação do bioma Cerrado?
Lara Montenegro – O Cerrado ocupa
quase ¼ do território nacional, o equivalente a dois milhões de km².
Hoje, mais da metade dessa área já se encontra devastada, e muitas das
regiões que ainda contam com cobertura vegetal estão fortemente
antropizadas e sob grande pressão da expansão da demanda por terras para
o agronegócio. A pecuária extensiva também é uma grande ameaça ao
bioma, principalmente por conta das baixas tecnologias empregadas e do
péssimo índice de produtividade: uma cabeça de gado por hectare. O
precário manejo das pastagens resultou em mais de 4,2 milhões de
hectares de pastagens degradadas, o equivalente a 10% da terra utilizada
para pecuária no Cerrado.
Da perspectiva de conservação, há
diferentes estratégias a serem promovidas e incentivadas por meio de
políticas públicas e por iniciativa da sociedade civil. A Rede Cerrado entende
que é fundamental fomentar modos de vida tradicionais que promovem o
uso sustentável da biodiversidade (que aliam geração de renda, qualidade
de vida e conservação da natureza), garantindo terra e acesso a
recursos para agricultores familiares e povos e comunidades
tradicionais. Nesse sentido, a demanda prioritária é de reconhecimento e
demarcação de terras indígenas, territórios quilombolas e de
comunidades tradicionais, áreas que ainda se encontram conservadas em
função dos modos de vida desses grupos, mas que estão sob ameaça
permanente.
Na Carta dos Povos do Cerrado, elaborada ao final do VII Encontro dos Povos do Cerrado,
ocorrido em setembro em Brasília, está listada uma série de demandas
nesse sentido. A estratégia de conservação pelo uso sustentável da
biodiversidade tem potencial para ser aplicada em grande escala,
inclusive fora de áreas protegidas. Além disso, propõe atividades
econômicas em áreas que continuarão provendo seus serviços ambientais. A
viabilização da atividade agroextrativista é, portanto, de grande
urgência. Hoje, estas cadeias produtivas encontram todos os tipos de
dificuldades fiscais, sanitárias e ambientais, que praticamente
inviabilizam sua existência.
IHU On-Line – Nos
últimos anos tem aumentado a plantação de eucalipto no Cerrado
brasileiro. É possível estimar que percentual do território já é ocupado
por essa cultura?
Lara Montenegro – Em
2010, a área plantada de pinus e eucalipto no Brasil era de mais de 6,5
milhões de hectares, área maior que as dos estados do Rio de Janeiro e
de Sergipe somadas. Essas monoculturas ocupam uma área cada vez maior no
Cerrado, principalmente no norte de Minas Gerais e no sul da Bahia. A
atividade gera poucos empregos e é responsável por grande parte dos
problemas que o bioma e seus povos têm enfrentado. Por serem árvores de
crescimento rápido, ciclo curto e que são plantadas em elevada
densidade, há grande demanda de água, o que frequentemente leva à
exaustão de nascentes e mananciais. Além de reduzir a quantidade de
água, a qualidade do solo e a biodiversidade, as plantações de eucalipto
muitas vezes causam o isolamento de comunidades locais, impedindo seu
acesso a recursos naturais essenciais a sua sobrevivência.
Apesar disso, os Planos Setoriais de Mitigação e de Adaptação às Mudanças Climáticas,
que estão sendo desenvolvidos pelo governo federal, preveem a ampliação
desses plantios florestais em três milhões de hectares até 2020. Partem
do princípio de que o uso do eucalipto substituirá o carvão retirado do
Cerrado nativo para a siderurgia. Porém, a solução não é tão linear
quanto parece. Há muitos problemas ambientais e sociais associados a
estes cultivos, já apontados por organizações e pesquisadores, como a
Rede Alerta Contra o Deserto Verde.
IHU On-Line – Por que as
monoculturas são prejudiciais para o bioma? Há algum controle em relação
às plantações e à degradação gerada?
Lara Montenegro – A
maior frente de expansão do cultivo de cana para produção do
biocombustível etanol, de soja para exportação, de eucalipto para
produção de celulose e de carvão para a siderurgia está ocorrendo no
Cerrado, empurrando outras culturas e a criação de gado para áreas mais
distantes, nas partes norte e oeste do Cerrado e sul da Amazônia.
Em geral, qualquer plantio homogêneo
causa problemas que já são bem conhecidos. Estes problemas são
ambientais (práticas agrícolas inadequadas que causam erosão, perda de
biodiversidade, contaminação de mananciais e de pessoas com agrotóxicos,
emissão de gases de efeito estufa) e sociais (expulsão de comunidades
de seus territórios, concentração de renda, destruição de recursos
naturais amplamente utilizados pelas comunidades locais).
Especificamente no caso da
cana-de-açúcar, com o aumento das áreas plantadas, é cada vez mais
frequente a constatação de problemas que envolvem a não observância das
áreas de preservação permanente e a prática de trabalho escravo ou
similar ao escravo. Na maioria dos casos, os trabalhadores são horistas e
ganham por produtividade, trabalhando à exaustão, sob más condições de
alojamento e alimentação. Tais questões precisam ser devidamente
consideradas na discussão da estratégia do governo federal de promoção
em larga escala do uso de biocombustíveis.
IHU On-Line – Como as comunidades tradicionais do Cerrado têm utilizado a terra?
Lara Montenegro – Muitas
comunidades tradicionais e agricultores familiares comprometidos com a
conservação do bioma têm trabalhado no sentido de aproveitar os ricos
recursos oferecidos pelo Cerrado, por meio do extrativismo de frutos e
produtos tais como o baru, o pequi, o babaçu, o buriti, a gueroba, entre
outros. Tais recursos são utilizados para a produção de alimentos,
fitocosméticos, artesanato etc., a partir de um conhecimento consolidado
e transmitido através de gerações.
A aliança entre agricultura familiar e
extrativismo sustentável (baseado em boas práticas de manejo na coleta)
tem rendido bons resultados tanto do ponto de vista de conservação do
bioma como do de geração de renda e qualidade de vida para a população
do campo. O resgate de sementes crioulas tem permitido a muitos grupos
retomar o cultivo de alimentos que vinham se perdendo. Práticas
agroecológicas também vêm progressivamente ganhando espaço e se
disseminando, consolidando-se como uma estratégia fundamental para
melhoria da qualidade do solo, aumento da produtividade, conservação de
biodiversidade e manutenção de serviços ecossistêmicos.
No caso das comunidades que vivem em
áreas coletivas e protegidas (como alguns grupos quilombolas e
indígenas), verifica-se que fazem melhor uso da área do que a média da
região. Há um padrão verificado internacionalmente (e no Brasil não é
diferente) que comprova que as florestas geridas por comunidades em
geral são as áreas mais bem preservadas. Esses padrões são facilmente
verificáveis por imagens de satélites.
IHU On-Line – Qual a importância delas para a manutenção e conservação do bioma?
Lara Montenegro – As
práticas destes grupos permitem a consolidação do que chamamos de
paisagens produtivas sustentáveis, baseadas na produção diversificada da
agricultura familiar associada à prática do extrativismo. Dessa forma, a
partir da variedade de espécies cultivadas e da manutenção de vegetação
nativa, é possível manter fluxos gênicos, estabelecer corredores
ecológicos, manter o ciclo hidrológico, entre diversas outras funções.
Como se sabe, a diversidade biológica é fundamental para a polinização e
para evitar pragas. As práticas de adubação verde também permitem a
conservação de água e solo assim como a redução do consumo de
fertilizantes.
IHU On-Line – De
acordo com alguns pesquisadores, o Cerrado é o bioma menos contemplado
pelas políticas públicas e tem menos regras em relação à ocupação.
Diante disso, como o agronegócio tem ameaçado a sustentabilidade do
bioma? É possível conciliar a conservação do bioma diante do crescimento
de monoculturas?
Lara Montenegro – No
Cerrado, 22 milhões de hectares estão ocupados por cultivos agrícolas.
As monoculturas de maior expressão são as de soja, eucalipto,
cana-de-açúcar e algodão. Estes sistemas produtivos estão pautados em um
modelo tecnológico que, além de desmatar grandes extensões de vegetação
nativa e gerar poucos empregos, utiliza grandes quantidades de insumos
químicos, o que levou o Brasil ao posto de maior consumidor de
agrotóxicos do mundo. Muitos dos pesticidas utilizados aqui já foram
banidos em outros países. O resultado disso é a contaminação da água, do
solo, dos alimentos e das pessoas. Tivemos um exemplo recente no Mato
Grosso do Sul em que até o leite materno encontrava-se contaminado com
agrotóxicos. Frequentemente, essas plantações deixam de herança vastas
áreas de solos degradados, que, quando ainda conseguem ser recuperados,
levam décadas até que possam voltar a desempenhar seus serviços
ambientais para manutenção da água, da biodiversidade e do carbono.
Entendemos que o esforço deve se dar no
sentido de destinar as áreas já desmatadas para as atividades de
produção de grãos e cana-de-açúcar, aprimorar as tecnologias para
ampliar a produtividade da pecuária (reduzindo a demanda de áreas para
pastagens) e, por outro lado, garantir o direito à terra e à manutenção
de modos de vida tradicionais de agricultores familiares e povos e
comunidades tradicionais, de forma associada também à criação
de Unidades de Conservação – UCs. Uma estratégia que
vem ganhando visibilidade, com bons resultados, é a de criação de
mosaicos de áreas protegidas, integrando UCs, terras indígenas e/ou
territórios quilombolas, como no caso da experiência do Mosaico Sertão Veredas/Peruaçu,
no norte de Minas Gerais. É possível compatibilizar o agronegócio com a
conservação do Cerrado, desde que sejam adotadas novas práticas
agrícolas que permitam a coexistência dessa atividade com a proteção do
bioma. No modelo atual, a coexistência é um desafio quase
intransponível.
IHU On-Line – Há
denúncias de que as comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas
têm sido expulsas dos biomas em que vivem. Isso se repete no Cerrado
brasileiro?
Lara Montenegro – O
modelo de produção vigente no campo brasileiro tem provocado inúmeros
conflitos e causado o isolamento e a perda de territórios de povos e
comunidades tradicionais em todo o país. Povos indígenas, comunidades
tradicionais e agricultores familiares estão sendo expulsos de suas
terras, sofrendo ameaças constantes, com inúmeros casos de assassinato
de lideranças comunitárias e indígenas, que infelizmente não têm sido
devidamente investigados e encaminhados pelas autoridades competentes.
Há situações críticas e de largo conhecimento público, como o caso da Terra Indígena Xavante Maraiwatsede,
no Mato Grosso, homologada em 1998, mas que permanece com 90% de sua
área ocupada por fazendeiros e posseiros não indígenas, e dos etnocídios
dos Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul e dos Ava-Canoeiro, em Goiás,
mas que seguem invisíveis diante das autoridades, pois o poder econômico
e os interesses do agronegócio falam mais alto do que os legítimos
pedidos de reconhecimento de direito à terra de povos indígenas e
comunidades tradicionais. Como forma de desestruturar as lutas destas
minorias, as terras em disputa estão sendo queimadas e desmatadas por
latifundiários.
IHU On-Line – De
acordo com alguns pesquisadores, o Parque Nacional das Nascentes do
Parnaíba está “na mira” de grupos econômicos, que pretendem utilizar as
águas dos rios para formar lagos de usinas hidrelétricas ou plantações
de soja. A informação procede? Qual a situação das unidades de
conservação do bioma?
Lara Montenegro – A
situação geral das unidades de conservação do bioma é de grande
isolamento diante de uma área crescente de monoculturas em seus
entornos. Apenas 2,8% do território do Cerrado encontra-se protegido por
meio de unidades de conservação de proteção integral, e há mais de sete
anos não se cria nenhuma nova unidade de conservação no bioma. Há
entraves em função dos interesses do setor de mineração e do
agronegócio, e as negociações dentro do governo federal não avançam.
Além disso, as reservas extrativistas (ou simplesmente Resex)
homologadas nunca foram implementadas, isto é, a regularização fundiária
nunca se efetivou, o que tem gerado conflitos permanentes. Para
completar, muitas das áreas previstas para criação de Resex vêm sendo
destruídas com vistas a inviabilizar sua constituição, como ocorreu
recentemente na área prevista para a Resex Areião/Vale do Guará, no
norte de Minas, que foi foco de incêndios criminosos neste mês de
setembro.
IHU On-Line – A
senhora participou do encontro da Rede Cerrado com a ministra do Meio
Ambiente, Izabella Teixeira? Como foi a conversa e de que forma a
ministra se posiciona diante das demandas do Cerrado? Nesse sentido,
qual é a postura do governo brasileiro em relação à conservação do
bioma?
Lara Montenegro – Na tarde do dia 13 de setembro, após o Grito do Cerrado, realizado
na Esplanada dos Ministérios, a ministra Izabella Teixeira recebeu uma
comissão de cerca de 20 representantes da Rede Cerrado, onde foram
discutidas rapidamente algumas estratégias prioritárias para a defesa do
bioma.
A ministra enfatizou a importância do
Cerrado e da Caatinga, que não têm a mesma visibilidade que Amazônia e
Mata Atlântica, e destacou a preocupação do ministério com o controle de
queimadas no Cerrado. Ela autorizou o uso de recursos do GEF Cerrado
para realizar o mapeamento de conflitos no bioma, mas declarou
desconhecer diversas demandas pela criação de UCs.
No entanto, o entendimento predominante
no âmbito do governo brasileiro é o de que é necessário ampliar o PIB e o
superávit primário, e o Cerrado é a principal frente para a expansão do
agronegócio. Assim, as linhas de crédito do Ministério da Agricultura
para os grandes produtores de commodities, por exemplo, são absurdamente
superiores àquelas oferecidas pelo Ministério do Desenvolvimento
Agrário aos agricultores familiares, que são responsáveis por 70% dos
alimentos que chegam à mesa dos brasileiros.
No âmbito do próprio Ministério do Meio Ambiente, as ações voltadas para o Cerrado andam a passos lentos, como é o caso do Programa Cerrado Sustentável, criado em 2005, mas sem recursos orçamentários para sua implementação, e o Zoneamento Ecológico Econômico do
bioma, que se arrasta há anos e que sequer tem a etapa de diagnóstico
concluída. O fato de não se criar nenhuma unidade de conservação no
bioma há sete anos, como disse acima, reforça o entendimento de que a
conservação do Cerrado está longe de ser um tema prioritário para o
governo brasileiro.
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http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/514233-cerrado-e-visto-como-fonte-para-aumentar-o-pib-brasileiro-entrevista-especial-com-lara-montenegro
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