Tinham para si que as palavras daquele produtor
de grãos só podiam ser endereçadas a eles; não restava dúvida por um simples
fato: na parte de trás do restaurante só havia duas mesas com pessoas.
Em uma das mesas, acabavam de sentar pessoas que
participavam da manifestação em defesa do Baixo Parnaíba, uma impressionante
tropa de quinhentas pessoas em disparada caminhada rumo à cidade de Brejo - só
imobilizaram a caminhada duas vezes, paradas decorrente de um problema no carro
de som e em proveito de uma merenda capaz de aliviar os pesos do cansaço, da
fome e da sede que já lancinavam as pessoas; na outra mesa, terminavam de
almoçar três senhores cuja conversa, que de particular não tinha nada, pois,
claramente, se exprimiam para que os por perto ouvissem, se aventurava sobre
aquela manifestação que se colocava contra o agronegócio no Cerrado leste do
estado do Maranhão, como se eles, produtores de grãos, representassem todas as
desgraças vividas pelos trabalhadores rurais daquela região e por isso o
agronegócio deveria ser enterrado antes que enterrasse o Baixo Parnaíba.
As críticas não eram novas, por certo, eram as de
sempre, desmatamento, agrotóxicos e grilagem de terras, mas a força e o tamanho
da organização, que as impulsionaram de supetão, os pegaram de calças
curtas. Haveria gente de fora ajudando na organização, dando massa
crítica às suas reivindicações, sem entrar no mérito da validade ou não?
Haveria gente de fora instruindo essa multidão a exigirem seu quinhão nesse
santuário, para o qual viemos atrás das promessas de terras baratas e
produtivas? Os três deviam estar com essas perguntas nas cabeças, pois um deles
presenciando o outro grupo soltou uma provocação mais ou menos assim: “Queria
vê-los trabalhando na roça”. Nos rostos das pessoas não havia nada
registrado sobre suas origens ou sobre suas atividades profissionais e
pessoais, é mais provável que neles houvesse mais sinais de desgaste, mas o
surgimento delas naquele momento pode ter servido de prova para todas as
insinuações e suposições que eles exercitavam em sua conversa “particular”.
Os suspeitos de sabotarem o agronegócio, na
verdade, eram dois jornalistas, a gerente regional do Ibama, Marluze Pastor
Santos, e o seu motorista. Estavam lá a convite do Fórum em Defesa do Baixo
Parnaíba que foi o organizador da marcha; dele fazem parte: Sociedade
Maranhense dos Direitos Humanos, Cáritas, Pólo Sindical do Baixo Parnaíba,
Fetaema, CPT, Fórum Carajás, CCN, Centro dos Direitos Humanos de Tutóia,
Pastoral Social da Diocese de Brejo e Fetraf. Se os produtores de grãos
retardassem um pouco a partida, somariam, às suas suspeitas, as aparições aos
pouquinhos de sindicalistas e políticos da região para almoçar e que se
achegavam junto à mesa onde estava a gerente regional do Ibama. Eles ouviram da
gerente os nomes das propriedades que possuíam licença de desmatamento. Virando
e desvirando páginas, a gerente assinalou três propriedades autorizadas. Porém,
pelos relatos das comunidades, vai se aprendendo que, no Cerrado, a lei só é
cumprida por quem não pode contratar uma firma de advocacia e que a quantidade
de área desmatada irregularmente ultrapassa a quantidade de área desmatada
regularmente.
No ponto alto da caminhada, quando os caminhantes
ocuparam a praça e a escadaria da igreja matriz de Brejo, depois de sete horas,
e quando foram ditados os nomes das comunidades atingidas por quaisquer
atividades vinculadas ao agronegócio, nos municípios de Brejo, São Bernardo,
Mata Roma, Buriti e Magalhães de Almeida, três destes nomes, que navegaram
pelos ventos daquele dia 04 de maio de 2005 para que todos ouvissem e
repetissem como se a afronta praticada atingisse também o íntimo de cada um
deles, foram os de Bebida Nova e Matinha, comunidades de Buriti. As pessoas que
moram nestas comunidades são aparentadas, muitas vezes, se criando juntos faz
décadas; a família do seu Zé Brasilino, vivente de 76 anos, é uma das quarenta
e cinco famílias que vêm defendendo com muito ardor e perseverança a comunidade
de Matinha do processo destrutivo de arrancar a madeira nativa, fornecendo-a
para grupos econômicos como o grupo João Santos, sediado em Coelho Neto, para
depois plantar grãos; a família do seu João Félix é uma das oito que detém a
posse dos 190 hectares da comunidade de Bebida Nova; não se sabe por quanto
tempo resistirão ao assédio dos produtores de grãos e às dificuldades que se
imporão de quilômetros percorridos, da reza para não desacordarem em pleno
arrozal pela aspiração de agrotóxicos.
O homem é o único animal ao qual não é permitido
esquecer. As denúncias levantadas pelo Fórum em Defesa do Baixo Parnaíba contra
o agronegócio fizeram a sociedade local sair parcialmente do conformismo
consentido no qual ela se encastelara, evitando assim que dúvidas desabrochassem
em seu seio. A calmaria em que tantos se deleitavam com vistas ao sucesso do
agronegócio não existia mais e os produtores de grãos se conscientizaram disso.
Congregados na Associação de Produtores do Cerrado Leste Maranhense, não
demorou muito, eles começaram a agir em duas frentes: respondendo às denúncias
levantadas no documento “O Baixo Parnaíba Exige Direitos” e ameaçando de revide
lideranças políticas e sindicais que estiveram e que estavam à frente do
movimento.
Responderam que os plantios de soja no Baixo
Parnaíba somam quinze mil hectares, chegando a 500 mil no futuro, numa área
total de 1.000.000 de hectares e que se valem da técnica do plantio direto para
evitar erosão do solo, perda de nutrientes, desperdício da água, etc.
Evidencia-se a partir dessas informações que o agronegócio pretende avançar
muito mais em áreas do Cerrado e que o conhecimento técnico-científico os
embasará nessa trajetória. Uma confiança a toda prova; mesmo que em Bebida Nova
encontrar água não seja mais tão fácil e que se escave mais de vinte metros e
nada, o conhecimento técnico-científico afiançará que o lençol freático tem de
0 a 30 metros de profundidade – a mesma confiança se estampava nas expressões
de funcionários da empresa Weisul Agrícola, que adquiriu mais de doze mil
hectares no município de Magalhães de Almeida. Tudo se previa; os agrônomos que
vinham do sul, a área desmatada, a madeira para as carvoarias e o carvão
vegetal para o grupo Gerdau, a área de reserva legal e a técnica de plantio
direto. Tudo na santa paz. Por que, então, as ameaças? A resposta talvez
esteja no momento crítico por que passa o agronegócio, argolado em dívidas e
sendo atraído aos poucos para a solução transgênicos. Qualquer intromissão em
seus projetos, como a recente declaração do secretário-geral do GTA que
criticou a pavimentação da BR-319 pela falta de transparência e a participação
social e que provocou a fúria e a agressão física da parte de produtores de
soja, passa ser vista com intolerância. No caso do Baixo Parnaíba, como pode
ser observado, as ações violentas de ameaças e desmatamento recrudesceram a tal
ponto que foi necessário a marcação de audiências públicas envolvendo
comunidades e relatores da Plataforma Dhesc que é uma rede nacional de
articulação de organizações da sociedade civil que visa promover ações comuns
em temas ligados aos Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (Dhesc),
constituindo-se como seção nacional da Plataforma Interamericana de Direitos
Humanos, Democracia e Desenvolvimento (Pidhdd). Visitarão o Baixo Parnaíba nos
dias 25 e 26 de agosto as relatorias de Alimentação, Água, Terra Rural e Meio
Ambiente para avaliar denúncias de violações de direitos humanos de comunidades
atingidas pela expansão da monocultura da soja; dar visibilidade às violações;
formular recomendações às autoridades públicas; e elaborar um relatório que
será disponibilizado à sociedade brasileira e de todo mundo e que será enviado
ao governo brasileiro e a organismos internacionais de proteção de direitos
humanos.
Mayron Régis
2005
Nenhum comentário:
Postar um comentário