segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Por um novo início e por uma nova verdade


Mayron Régis
Jornalista Fórum Carajás
Adital
Sem sombra de dúvida: o fim se aproxima, e de um jeito que se esgota com uma rapidez que aflige os olhos. Estaremos prontos para um novo início, sendo início aquilo que nos parece único sem deixar de ser outros? Estaremos prontos para uma nova verdade que, certamente, surgirá associada ou próxima a esse início, sem esquecer, contudo, verdades anteriores que morreram ou estão para morrer? Sem esquecer que estas verdades serviram de escudo e de alimento para aqueles que ousaram lutar por algo melhor, seja para o seu pequeno mundo ou para o mundo de todos.

Em primeiro lugar, é preciso saber que para uma verdade que buscamos e que aceitamos, devemos usar a nossa consciência antes de aceitar ou não uma verdade, existe uma outra que a nega e que a desafia. Neste universo de sem-fins, de saberes cobertos e por serem descobertos e de existências quase infinitas - o cerrado, então, é um universo que ainda não foi descoberto na inteireza que lhe cabe-, verdades há que vem para afirmar e desconfirmar o que muitas vezes pensamos ou dizemos como certo ou errado, como prontos ou mal realizados. Creio ter sido com esse propósito que o padre Humberto Guidotti, da paróquia de São Raimundo das Mangabeiras, iniciou a sua palestra no seminário internacional sobre cerrados, acontecido em julho de 2004, na cidade de Balsas, sul do Maranhão, com as seguintes frases: “Acredito que um objetivo importante do nosso seminário seja a busca da verdade, ou, como se diz na linguagem jornalística, o outro lado. Contra a verdade hegemônica e o pensamento único sobre o agronegócio e soja queria mostrar o que pensa o povo”.

Servo de Deus e, por escolha política e espiritual, servo do povo, como se sentiria Padre Humberto se soubesse que a sua averbação pouco ou nada seria escutada para além dos muros do colégio Maristas de Balsas, lá onde estavam hospedados, pelo tempo do seminário, militantes da igreja católica, de direitos humanos, de movimentos sociais e ambientalistas? O pouco caso para com os que acreditam ou buscam uma outra verdade que não a hegemônica pode ser constatado a partir do conhecimento da conversa que houve entre representantes de entidades da sociedade civil e o ministro da agricultura Roberto Rodrigues, encastelados na cidade de Brasília, longe de tudo e de todos. Sucintamente, a conversa se prestou a esclarecimentos sobre o desmatamento da Amazônia e o seu vínculo com a cultura da soja. Enquanto o assunto por aí estava, o ministro se mostrava prudente; bastou que o assunto cerrado entrasse na roda, para que o ministro alterasse o sentido da sua fala, mudando para pior. Afirmou que o mundo precisa ser alimentado e o cerrado serve para gerar esses alimentos.

Uma conversa dessas dificilmente teria vez nos jornais e revistas da atualidade. Quem teria coragem de publicá-la e dá o caráter político que ela merece e que ela exige?

De todo o nosso tempo, usamos boa parte dele para ler e assistir jornais. Buscamos nos informar sobre o que vem acontecendo no mundo político, dos negócios e da cultura. Fazendo um rastreio e uma medição, chegaremos a conclusão coerente de que vivemos num mundo quase perfeito ou em vias de perfeição. Pelas páginas dos jornais e pelas imagens na televisão vemos um mundo em processo de expansão social e econômica. Como sempre, no final do ano, temos um aumento na taxa de pessoas empregadas e isso é comemorável. Graças ao aumento das exportações de soja e outras monoculturas, o Brasil vê apresentando sucessivos saldos. Via-de-regra, nós ficamos sobre a superfície do que nos é entregue, sempre nos recusando a ir a fundo. Se fôssemos, aonde chegaríamos? Do outro lado, como disse o padre Humberto?

Com relação ao jornalismo, não existe um outro lado, pois o jornalismo não é uma folha de papel que pode se escrever com um propósito de um lado e com outro propósito no outro lado. Em se tratando do agronegócio, o jornalismo só tem vistas para um lado: o dos dividendos que o setor traz consigo. O jornalismo provoca em seus textos, nesse ponto a publicidade perde feio, um doce sabor de ilusões com relação ao agronegócio. Para muitos, matérias na Veja ou no Jornal Nacional são garantia de idoneidade e, como São Tomé, vemos e pagamos para crer. Sim, a Veja escreve uma coisa absolutamente irreal, do tipo “os novos desbravadores do centro-oeste”. Sim, a Globo veicula imagens de máquinas ceifando a soja que já havia ceifado o cerrado aproveitando legislações e vigilâncias tortas. E estamos lambendo os beiços de tão maravilhados.

Em 2004, a Globo fez a gentileza de produzir uma série sobre os cerrados, sim, porque existe o cerrado de ontem, hoje, amanhã e de quase sempre, afora os cerrados certos, incertos e transitórios, aqui aproveitando uma definição do professor Carlos Walter da Universidade Federal Fluminense, do Maranhão, Piauí, Tocantins e tantos outros estados, e sem esquecer os cerrados de palavras secas, ensimesmadas, trôpegas, sinuosas e cheias de vazão de rio ou abundantes de olhos de água sabe de onde aparecem. Passaria a noites e dias para arrancar do cérebro cada palavra ou expressão que sirva à perfeição como enfeites dos cerrados. Porque o cerrado já nasce e vai se formando de casca em casca, de folha em folha e de fruto em fruto, de árvore em árvore. Gente e palavras vêm depois na sobranceira. A propósito, quantas palavras e quantas imagens foram usadas na série da Rede Globo para falar sobre os cerrados? Com certeza, muitas foram cortadas na edição para termos uma série límpida e objetiva, sem maiores texturas, feridas e complexidades. Pode um universo como os dos cerrados ser entendido em uma série de cinco capítulos? Os saberes, dos que vivem nos cerrados e nas suas transitoriedades, são únicos e ao mesmo tempo inúmeros e como disse o professor Carlos Walter “só um saber é capaz de dar conta com profundidade, não o saber acadêmico e sim o saber o caboclo, do camponês que por vivência vai sabendo aquela misturada toda”. E esse saber, chego a completar, é demasiado humano, de gratidão, de recolhimento, de retribuição e de celebração.

Em contraposição a esses saberes, temos o saber técnico-científico que sustenta o avanço das monoculturas pelos cerrados brasileiros. Até meados dos anos 60, os cerrados eram vistos como regiões impróprias para a produção de cultivares como a soja. Com o apoio e incentivo de agências multilaterais como a Jica, começou a se plantar soja nos chapadões do cerrado mineiro. O resultado positivo serviu de estímulo para que novos projetos de soja fossem implantados nos cerrados tocantinenses e maranhenses. Desde então, o agronegócio e os setores da biotecnologia viraram seres demiurgos que movimentam a economia e a ciência, ao seu bel prazer, cobrando obediência e recursos para melhor se desenvolverem. Entra nesse bojo, o controle das sementes por parte de algumas empresas multinacionais e o aumento do repasse de dinheiro para o financiamento da safra. Em 2004, o agronegócio teve mais de 40 bilhões de reais, por outro, a agricultura familiar teve cinco bilhões, vindos do governo federal.

Para o futuro, a conclusão mais provável é de que haverá mais pressão sobre os cerrados e outros biomas, haja vista o declínio das reservas petrolíferas e a urgência em incrementar alternativas energéticas para um mundo em crise energética. Portanto, mais monoculturas pela direita e pela esquerda (cana, mamona e dendê), e, como linha paralela, a ocupação do que resta dos cerrados e a retirada das populações tradicionais. Estes serão os principais afetados e as suas lutas devem ser para que o seu modo de vida não sucumba e nem seja esquecido. Para cada comunidade em luta para conservar o cerrado em pé, para não vê-lo arrastado entre correntes ou inundado em lagos, deve haver outras tantas servindo de elo de ligação com o mundo que quer encontrar os caminhos que levam a verdadeira humanidade.

Estaremos prontos para encarar essa verdade?

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