sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O CERRADO E A CRISE HÍDRICA: PROBLEMA E SOLUÇÕES


Autor: Donald Sawyer*
Tema: Água
A conclusão é muito simples: sem o Cerrado vivo, livre de grandes vazios, a água não chega ao Sudeste.
O Brasil enfrenta uma crise de água sem precedentes, e portanto uma crise de energia elétrica. Sem água e energia suficientes, o país afunda economica e politicamente. Não se sabe o por quê dessas crises, muito menos o que fazer. Aqui apresentamos explicações e possíveis soluções. 
Don Sawyer - Foto: Agência UnB
O silêncio inexplicável diz respeito ao Cerrado, que fica no meio do caminho entre a Amazônia e o Sudeste. Os especialistas em mudanças climáticas preocupam-se com temperatura em detrimento de água. Estudam emissões de gases de efeito estufa contendo carbono, dando pouca atenção para emissões de vapor d'água. Geralmente, as metodologias e os modelos referentes a precipitação de chuva e vazão de rios supõem constância secular em vez de mudança. Não consideram devidamente o uso da terra e a densidade populacional, ou seja, os impactos antrópicos.
Antônio Nobre (2014) publicou "O futuro climático da Amazônia" e deu entrevistas explicando que a água de São Paulo vem da Amazônia por meio do deslocamento de umidade atmosférica, conforme mostrado anteriormente por Enéas Salati em 1978, o projeto Rios Voadores (www.riosvoadores.com.br) e artigos do INPE, entre outros. 
Para Nobre, o desmatamento na Amazônia seria a causa da seca no Sudeste. A solução proposta por ele é reflorestar os 20% da Amazônia já desmatados. Seus argumentos geraram controvérsia, nem sempre explícita, entre especialistas. Argumentamos aqui que, embora os "rios aéreos" sejam a origem da chuva no Sudeste, a causa da seca e a receita apontadas estão equivocadas.
A Amazônia é a única origem plausível da chuva que cai no Sudeste e Centro-Oeste. Não pode ser do Pacífico, a oeste, nem da Argentina, ao sul, nem do sertão semi-árido, a leste. Só pode ser do norte, uma das áreas mais úmidas do mundo. No entanto, reflorestar tudo não irá acontecer, nem resolveria.
O silêncio inexplicável diz respeito ao Cerrado, que fica no meio do caminho entre a Amazônia e o Sudeste. Todos sabem que o Cerrado é o berço das águas do Brasil e que água não sobe morro, mas ninguém se pergunta como a água chega no planalto central. Mesmo quem defende os rios aéreos acha que apenas fluem ao longo das encostas orientais dos Andes. Se fosse assim, de onde viria a chuva no Brasil Central?
Os mapas dos rios aéreos mostram que a umidade proveniente do Atlântico passa por seis ciclos sucessivos de precipitação e evapotranspiração caminho à Amazônia ocidental, antes de esbarrar nos Andes e virar para o sul. Em vez de rios, seriam na realidade uma forma de circulação hidrológica atmosférico-terrestre reiterada. O curioso é que nenhum dos estudos mostra quaisquer ciclos posteriores caminho ao Sudeste. A umidade atmosférica teria autonomia de voo de três mil quilômetros? De onde viria a chuva que cai ao longo desse trajeto todo?
Se o desmatamento de 20% da Amazônia fosse a causa da seca, a precipitação no Acre teria que ter se reduzido ao longo das últimas três décadas. Além disso, o desmatamento ocorreu principalmente no Arco do Desmatamento, ao sul e leste, não ao longo da calha do Amazonas. Ao contrário, a precipitação média em Cruzeiro do Sul aumentou de cerca de 1500 mm. em 1980-85 para cerca de 2000 mm. em 2010-13. Também ocorreram grandes enchentes recentes no Acre e Rondônia. Isso indica que a água dessa região desce o Amazonas, não que as nuvens não chegam perto dos Andes. A redução do fluxo ao Sudeste deve ocorrer no trecho norte-sul, não no trecho leste-oeste que o antecede.
A evapotranspiração, que devolve a água ao ar, depende da cobertura florestal, ou seja, da biodiversidade. 50% do Cerrado já foram desmatados. Suas florestas possuem raízes profundas, que reciclam água durante o ano todo, inclusive durante o período seco. Outras partes do bioma são savanas. O problema é exacerbado pela aceleração do escoamento superficial em terras desmatadas. Maior escoamento aqui significa menos chuva mais adiante. Além disso, as ilhas de calor rurais em áreas desmatadas fazem o ar aquecido subir às alturas, gerando chuvas torrenciais que resultam em enxurradas em vez de infiltração e posterior evapotranspiração.
Basta um elo rompido na transmissão norte-sul de água atmosférica para quebrar a corrente. Grandes áreas desmatadas no Cerrado ou na transição entre biomas, se localizadas no caminho das águas, podem formar uma barreira, como se fosse um dique, embora seja mais para ralo. Não seria necessário desmatar mais ou reflorestar rio acima para reduzir o fluxo.
A conclusão é muito simples: sem o Cerrado vivo, livre de grandes vazios, a água não chega ao Sudeste. A água que cai na bacia amazônica (que inclui 40% do Cerrado) volta para o mar em vez de subir para o ar. A água que cai no resto do Cerrado se escoa pelos grandes rios, que podem ter usinas hidrelétricas, mas não servem para atender demandas de consumo humano ou animal.
Não tem sentido o Brasil, que conta com 12% da água doce do mundo, sofrer com falta de água e portanto de energia hidrelétrica. Para o país contar com água nos reservatórios, de nada adiantam ações nas bacias dos reservatórios dos sistema Cantareira se elas não receberem precipitação. Reflorestar APPs e reduzir erosão e assoreamento têm seu mérito por outras razões, mas para resolver os problemas de escassez de água e energia erram o alvo. O que conta é água nos reservatórios, que depende das chuvas. O pseudo-ecologismo inocente acaba sendo útil para a insustentabilidade.
Este problema que desafia o Brasil, além de alguns países vizinhos, exige novos estudos urgentes de mudanças nos padrões de precipitação e vazão, que não são mais constantes na média ao longo de décadas ou séculos, como se supõe. "Rios voadores" soam como delírio, mas não são. Também urge entender a relação desses novos padrões com mudanças no uso da terra na escala adequada, local e regional. Há que se romper com dogmas existentes. A partir de um entendimento mais correto, algumas soluções possíveis seriam:
1) Uso da terra. Aumentar a produtividade nas áreas já desmatadas, especialmente para a pecuária, reduzir o escoamento superficial e recuperar e reflorestar grandes partes de bacias inteiras, mesmo com espécies exóticas como eucalipto. Paisagens produtivas sustentáveis com povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares devem ser combinadas com áreas protegidas e terras indígenas, todas com presença humana, a única possibilidade de conservação existente atualmente.
2) Reservatórios. Fazer hidrelétricas com reservatórios suficientes em vez de tecnologia de fio d'água, que prejudica a confiabilidade de geração e a relação custo-benefício e implica a construção de usinas termelétricas.
3) Estocagem. Reduzir a sazonalidade crescente da vazão dos rios, que se deve a chuvas mais torrenciais e escoamento superficial acelerado, construindo barragens de todos os tipos e tamanhos no Centro-Oeste e no Sudeste. Não se deve desperdiçar a água abundante no verão e escassa no inverno. Água estocada também serve para manter o crescimento da cobertura vegetal, que emite água e sequestra carbono.
4) Irrigação. Promover a irrigação com o excesso de água que cai torrencialmente no período mais chuvoso e pode ser estocada em barragens, uma vez que a irrigação devolve água à atmosfera quando não está chovendo.
5) Biomassa. Comparado com pastagens, as culturas anuais em crescimento sequestram carbono e reduzem as emissões de CO2 no verão, que é o que interessa em termos de mitigar o aquecimento global.
6) Agricultura sustentável. Evitar que o Cadastro Ambiental Rural (CAR), que está muito atrasado, seja impedimento de investimentos necessários para tornar o uso da terra mais produtiva e sustentável e reduzir a pressão pelo desmatamento.
7) Diálogo. Trabalhar junto com os chamados ruralistas, que são totalmente dependentes de água para produzir, para tornar o agronegócio mais sustentável em vez de demonizar a categoria toda. 
*Professor aposentado do Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS) da Universidade de Brasília (UnB) e Pesquisador Associado ao Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN)

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