A conclusão é muito simples: sem o Cerrado vivo, livre de grandes vazios, a água não chega ao Sudeste.
O Brasil enfrenta uma
crise de água sem precedentes, e portanto uma crise de energia elétrica.
Sem água e energia suficientes, o país afunda economica e
politicamente. Não se sabe o por quê dessas crises, muito menos o que
fazer. Aqui apresentamos explicações e possíveis soluções.
Don Sawyer - Foto: Agência UnB
Os especialistas em mudanças climáticas preocupam-se com temperatura em detrimento de água. Estudam emissões de gases de efeito estufa contendo carbono, dando pouca atenção para emissões de vapor d'água. Geralmente, as metodologias e os modelos referentes a precipitação de chuva e vazão de rios supõem constância secular em vez de mudança. Não consideram devidamente o uso da terra e a densidade populacional, ou seja, os impactos antrópicos.
Os especialistas em mudanças climáticas preocupam-se com temperatura em detrimento de água. Estudam emissões de gases de efeito estufa contendo carbono, dando pouca atenção para emissões de vapor d'água. Geralmente, as metodologias e os modelos referentes a precipitação de chuva e vazão de rios supõem constância secular em vez de mudança. Não consideram devidamente o uso da terra e a densidade populacional, ou seja, os impactos antrópicos.
Antônio Nobre (2014) publicou "O futuro
climático da Amazônia" e deu entrevistas explicando que a água de São
Paulo vem da Amazônia por meio do deslocamento de umidade atmosférica,
conforme mostrado anteriormente por Enéas Salati em 1978, o projeto Rios
Voadores (www.riosvoadores.com.br) e artigos do INPE, entre outros.
Para Nobre, o desmatamento na Amazônia
seria a causa da seca no Sudeste. A solução proposta por ele é
reflorestar os 20% da Amazônia já desmatados. Seus argumentos geraram
controvérsia, nem sempre explícita, entre especialistas. Argumentamos
aqui que, embora os "rios aéreos" sejam a origem da chuva no Sudeste, a
causa da seca e a receita apontadas estão equivocadas.
A Amazônia é a única origem plausível da
chuva que cai no Sudeste e Centro-Oeste. Não pode ser do Pacífico, a
oeste, nem da Argentina, ao sul, nem do sertão semi-árido, a leste. Só
pode ser do norte, uma das áreas mais úmidas do mundo. No entanto,
reflorestar tudo não irá acontecer, nem resolveria.
O silêncio inexplicável diz respeito ao
Cerrado, que fica no meio do caminho entre a Amazônia e o Sudeste. Todos
sabem que o Cerrado é o berço das águas do Brasil e que água não sobe
morro, mas ninguém se pergunta como a água chega no planalto central.
Mesmo quem defende os rios aéreos acha que apenas fluem ao longo das
encostas orientais dos Andes. Se fosse assim, de onde viria a chuva no
Brasil Central?
Os mapas dos rios aéreos mostram que a
umidade proveniente do Atlântico passa por seis ciclos sucessivos de
precipitação e evapotranspiração caminho à Amazônia ocidental, antes de
esbarrar nos Andes e virar para o sul. Em vez de rios, seriam na
realidade uma forma de circulação hidrológica atmosférico-terrestre
reiterada. O curioso é que nenhum dos estudos mostra quaisquer ciclos
posteriores caminho ao Sudeste. A umidade atmosférica teria autonomia de
voo de três mil quilômetros? De onde viria a chuva que cai ao longo
desse trajeto todo?
Se o desmatamento de 20% da Amazônia fosse
a causa da seca, a precipitação no Acre teria que ter se reduzido ao
longo das últimas três décadas. Além disso, o desmatamento ocorreu
principalmente no Arco do Desmatamento, ao sul e leste, não ao longo da
calha do Amazonas. Ao contrário, a precipitação média em Cruzeiro do Sul
aumentou de cerca de 1500 mm. em 1980-85 para cerca de 2000 mm. em
2010-13. Também ocorreram grandes enchentes recentes no Acre e Rondônia.
Isso indica que a água dessa região desce o Amazonas, não que as nuvens
não chegam perto dos Andes. A redução do fluxo ao Sudeste deve ocorrer
no trecho norte-sul, não no trecho leste-oeste que o antecede.
A evapotranspiração, que devolve a água ao
ar, depende da cobertura florestal, ou seja, da biodiversidade. 50% do
Cerrado já foram desmatados. Suas florestas possuem raízes profundas,
que reciclam água durante o ano todo, inclusive durante o período seco.
Outras partes do bioma são savanas. O problema é exacerbado pela
aceleração do escoamento superficial em terras desmatadas. Maior
escoamento aqui significa menos chuva mais adiante. Além disso, as ilhas
de calor rurais em áreas desmatadas fazem o ar aquecido subir às
alturas, gerando chuvas torrenciais que resultam em enxurradas em vez de
infiltração e posterior evapotranspiração.
Basta um elo rompido na transmissão
norte-sul de água atmosférica para quebrar a corrente. Grandes áreas
desmatadas no Cerrado ou na transição entre biomas, se localizadas no
caminho das águas, podem formar uma barreira, como se fosse um dique,
embora seja mais para ralo. Não seria necessário desmatar mais ou
reflorestar rio acima para reduzir o fluxo.
A conclusão é muito simples: sem o Cerrado
vivo, livre de grandes vazios, a água não chega ao Sudeste. A água que
cai na bacia amazônica (que inclui 40% do Cerrado) volta para o mar em
vez de subir para o ar. A água que cai no resto do Cerrado se escoa
pelos grandes rios, que podem ter usinas hidrelétricas, mas não servem
para atender demandas de consumo humano ou animal.
Não tem sentido o Brasil, que conta com
12% da água doce do mundo, sofrer com falta de água e portanto de
energia hidrelétrica. Para o país contar com água nos reservatórios, de
nada adiantam ações nas bacias dos reservatórios dos sistema Cantareira
se elas não receberem precipitação. Reflorestar APPs e reduzir erosão e
assoreamento têm seu mérito por outras razões, mas para resolver os
problemas de escassez de água e energia erram o alvo. O que conta é água
nos reservatórios, que depende das chuvas. O pseudo-ecologismo inocente
acaba sendo útil para a insustentabilidade.
Este problema que desafia o Brasil, além
de alguns países vizinhos, exige novos estudos urgentes de mudanças nos
padrões de precipitação e vazão, que não são mais constantes na média ao
longo de décadas ou séculos, como se supõe. "Rios voadores" soam como
delírio, mas não são. Também urge entender a relação desses novos
padrões com mudanças no uso da terra na escala adequada, local e
regional. Há que se romper com dogmas existentes. A partir de um
entendimento mais correto, algumas soluções possíveis seriam:
1) Uso da terra. Aumentar a produtividade
nas áreas já desmatadas, especialmente para a pecuária, reduzir o
escoamento superficial e recuperar e reflorestar grandes partes de
bacias inteiras, mesmo com espécies exóticas como eucalipto. Paisagens
produtivas sustentáveis com povos e comunidades tradicionais e
agricultores familiares devem ser combinadas com áreas protegidas e
terras indígenas, todas com presença humana, a única possibilidade de
conservação existente atualmente.
2) Reservatórios. Fazer hidrelétricas com
reservatórios suficientes em vez de tecnologia de fio d'água, que
prejudica a confiabilidade de geração e a relação custo-benefício e
implica a construção de usinas termelétricas.
3) Estocagem. Reduzir a sazonalidade
crescente da vazão dos rios, que se deve a chuvas mais torrenciais e
escoamento superficial acelerado, construindo barragens de todos os
tipos e tamanhos no Centro-Oeste e no Sudeste. Não se deve desperdiçar a
água abundante no verão e escassa no inverno. Água estocada também
serve para manter o crescimento da cobertura vegetal, que emite água e
sequestra carbono.
4) Irrigação. Promover a irrigação com o
excesso de água que cai torrencialmente no período mais chuvoso e pode
ser estocada em barragens, uma vez que a irrigação devolve água à
atmosfera quando não está chovendo.
5) Biomassa. Comparado com pastagens, as
culturas anuais em crescimento sequestram carbono e reduzem as emissões
de CO2 no verão, que é o que interessa em termos de mitigar o
aquecimento global.
6) Agricultura sustentável. Evitar que o
Cadastro Ambiental Rural (CAR), que está muito atrasado, seja
impedimento de investimentos necessários para tornar o uso da terra mais
produtiva e sustentável e reduzir a pressão pelo desmatamento.
7) Diálogo. Trabalhar junto com os
chamados ruralistas, que são totalmente dependentes de água para
produzir, para tornar o agronegócio mais sustentável em vez de demonizar
a categoria toda.
*Professor aposentado do Centro de
Desenvolvimento Sustentável (CDS) da Universidade de Brasília (UnB) e
Pesquisador Associado ao Instituto Sociedade, População e Natureza
(ISPN)
Nenhum comentário:
Postar um comentário