sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Anatomia de um licenciamento




Mayron Regis e Glenn Switkes*

A discussão em torno do licenciamento ambiental nunca esteve tão acirrada como no atual governo. Isso se deve em parte à maior exigência da sociedade pelo respeito ao meio ambiente e pela obediência à legislação ambiental, exigência que motiva a eterna vigilância de alguns órgãos como é o caso do Ministério Público. De outra parte, sabe-se que o governo busca a retomada do crescimento econômico do país em parceria com grandes grupos econômicos, num curto espaço de tempo, através da construção de obras de infra-estrutura que podem ajudar nessa retomada.

A polêmica sobre o assunto intensificou com as declarações das empresas empreiteiras e eletro-intensivas, e pelos discursos da Ministra de Minas e Energia. Paulo Godoy, Presidente da Associação Brasileira da Infra-estrutura e Industrias de Base (ABDIB) reclamou publicamente sobre “a letargia e a indecisão” no processo de licenciamento, e Ministra Dilma Roussef afirmou que 45 hidrelétricas já licitadas não conseguiram a liberação por parte do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) o que pode acarretar um novo apagão até 2007, pois são 13 mil MW que não foram despejados no sistema elétrico (FSP, 5 de agosto de 2004). Além dessas declarações, outras vieram à tona, em jornais e revistas, apontando o Ministério do Meio Ambiente e o Ibama como inimigos do progresso e responsáveis por parte do atraso em que o Brasil se encontra na área de infra-estrutura e logística.

Preocupados com o grau de desinformação que se apresentava com relação a Estreito e outros processos, o Grupo de Trabalho de Energia do Fórum Brasileiro de Organizações Não-Governamentais e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento se reuniram em março deste ano com a secretaria-executiva do Ministério do Meio Ambiente e o setor de licenciamento do Ibama com a intenção de obter informações e colocar considerações técnicas sobre as várias hidrelétricas que estavam em análise. Ficou acertado que o Ibama disponibilizaria documentos sobre os processos, desde que se fizesse um pedido oficial. O Fórum aguardou cinco meses até que os documentos fossem enviados, devido às dificuldades estruturais e materiais por que passa o órgão.

O processo mais emblemático da discussão sobre licenciamento tem sido a da hidrelétrica de Estreito, projeto de interesse do Consórcio Estreito de Energia (CESTE) que prevê uma capacidade instalada de geração de 1.087 MW. Conta-se dois anos desde as cinco audiências públicas sobre a hidrelétrica nos municípios de Carolina, Babaçulândia, Filadélfia, Estreito e Aguiarnópolis, sem que ainda se tenha nenhuma previsão sobre a viabilidade ambiental ou não do projeto.

O Fórum conseguiu 8 volumes que constituem o processo de licenciamento da hidrelétrica Estreito. Nos documentos ficamos a par de todo o processo que se inicia no ano de 2000 antes da entrega do EIA-Rima e a licitação da hidrelétrica pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL).. As principais informações contidas no EIA-Rima caracterizavam os impactos de Estreito em uma inundação de 710 km2, no deslocamento de 13,939 pessoas, e na perda de 15.880 ha de lagoas e 45.780 ha de mata de galeria ao longo dos quase 300 km do reservatório que seria formado pela barragem. E que também haveria interferência na produção de agricultores da região, tanto com os coletores de babaçu, muito comum na região. Após as audiências públicas de julho de 2002, praticamente estava certo para os empreendedores que o Ibama daria a licença prévia, mas em 2003 a nova administração do Ibama reverte essa expectativa ao enviar equipes ao ambiente do projeto para fazerem novos levantamentos in situ cujos resultados foram os pedidos de readequações dos estudos do projeto.

As readequações estão relacionadas à fauna, afetada pela obra, melhor caracterização dos ecossistemas e das sub-bacias afetadas, a necessidade (recomendação da FUNAI) de analisar os impactos no povo indígena Apinajé (a reserva fica a 40 km da barragem), estudos adicionais sobre impactos na qualidade de água, e projeções sobre a subida do espelho de água, entre outros. O consórcio CESTE (Tractebel, Companhia Vale do Rio Doce, Alcoa, BhpBilliton, e Camargo Corrêa) chegou a negar de fazer as novas coletas de fauna em 3 épocas do ano, afirmando ao Ibama que os resultados das primeiras amostras foram semelhantes aos daquelas do EIA-Rima, um fato com que Ibama não concordou. Novas dúvidas sobre a qualidade técnica dos estudos surgiram quando CESTE informou ao Ibama que novos levantamentos aéreos confirmaram que a área da inundação provocada pela barragem seria 30% menor que previsto no EIA-Rima.

CESTE vem pressionando o Ministério do Meio Ambiente e o Ibama para liberarem a licença prévia, sem a realização de novas audiências publicas, uma das razões que embasam as ações civis públicas dos Ministérios Públicos do Maranhão e do Tocantins contra a hidrelétrica de Estreito. Se os novos estudos não apresentaram alterações significantes quanto ao estudo original, os impactos ambientais são contornáveis e os impactos sociais são positivos, como afirma CESTE, por quê, então, CESTE teme novas audiências públicas?

A nossa conclusão é que, sim, existem atrasos excessivos nas deliberações do Ibama, principalmente por falta de quadros para analisar os estudos. Faltam também técnicos para averiguar as dimensões dos impactos sobre a população a ser atingida pela obra. Mas também, há um clima de enfrentamento construído por interesses econômicos querendo fazer um curto-circuito dos legítimos processos em prol a proteção do meio ambiente e dos direitos das populações locais Há a necessidade de estabelecer um padrão mais claro para licenciamento ambiental, que contempla os usos múltiplos de água, os impactos cumulativos de várias obras num rio como o Tocantins, previsto de ser transformado numa escada de grandes lagos, e para melhor analisar as alternativas para fornecer energia necessária para o desenvolvimento do país.

* Mayron Régis Brito Borges, jornalista, assessor de comunicação do Fórum Carajás, rede de ONG`s, sindicatos e Movimentos sociais dos estados do Pará, Tocantins e Maranhão. Glenn Switkes, jornalista, Diretor do Programa na América Latina da International Rivers Network. As organizações fazem parte do GT Energia do Fórum Brasileira de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento.

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