O
assassinato de Flaviano Pinto Neto, morador da comunidade quilombola de
Charco, no Maranhão, completa quatro anos. Morto por defender a terra
de seu povo, os criminosos nunca foram presos
Texto por Renata Neder*
30
de outubro de 2010. Flaviano Pinto Neto entra no carro de um conhecido e
vai até um estabelecimento – uma espécie de bar – na beira da estrada
(a MA 014), perto da comunidade onde mora. O conhecido lhe paga algo de
beber e vai embora, deixando Flaviano conversando com a dona do local.
Algum tempo depois, um homem entra no estabelecimento e dispara pelo
menos sete tiros contra Flaviano, assim mesmo, à queima-roupa.
Difícil
escolher o ponto exato a partir do qual devemos começar a contar essa
história e o que levou a esse assassinato. Quanto maior o recuo no
tempo, maior a sensação de injustiça.
A
comunidade quilombola do Charco fica na região conhecida como
“Baixada”, no interior do Maranhão, a pouco menos de 300 km da capital
São Luís. Lá vivem, hoje, em torno de 90 famílias. A paisagem seca do
mês de outubro não reflete a realidade que dá nome ao local – “Charco”,
uma referência ao alagamento da região durante o período das chuvas.
Quando a seca permite, plantam mandioca, arroz, milho, batata e criam
alguns animais. Também coletam coco de babaçu. Mas até uns seis anos
atrás, a maior parte da produção não ficava com eles. Um fazendeiro da
região alegava que aquela terra que a comunidade ocupa era de
propriedade dele e, por isso, exigia o pagamento de um “foro”, um valor
pelo uso da terra.
Apesar
de achar injusto, as famílias pagavam. O que sobrava era quase nada.
Seu Davi, que hoje já passou de seus 60 anos, lembra que na sua infância
pouco restava para o consumo da família, em geral apenas o cultivo da
“soca” (o rebrote do arroz após o corte da colheita principal). Era duro
plantar, colher, e ver o fruto do trabalho ser entregue para o
fazendeiro.
Indignados
com essa situação, alguns moradores questionaram a legalidade dessa
exigência do fazendeiro e seus herdeiros. Se as famílias eram nascidas e
criadas ali no Charco, como poderia aquela terra pertencer a outra
pessoa? Exigiram então que o fazendeiro apresentasse o título de
propriedade provando que era o dono da terra. Só assim fariam o próximo
pagamento.
No dia
marcado, em janeiro de 2008, a comunidade estava disposta a pagar o
“foro”, desde que visse o documento. O fazendeiro, no entanto, não tinha
documento nenhum a apresentar e, assim, o pagamento não foi feito.
Dizem que foi ali que Flaviano Pinto Mendes assinou sua sentença de
morte. Os anos que se seguiram foram marcados por ameaças e ataques à
comunidade do Charco.
Raimundo
Silva tem 56 anos e é nascido e criado no Charco, assim como sua mãe.
Diz que ali “não é invadido. Nós somos nascidos e criados aqui”. Ele conta que os fazendeiros “falavam sempre que iam vir de trator e derrubar tudo”. Uma
noite, em agosto de 2008, ele e outros moradores acordaram com um
incêndio. Correram lá e só viram o fogo que destruía a sede da
Associação de Moradores. Raimundo disse que sentiram medo, mas que “na
mesma hora que a gente criava medo, a gente criava coragem”.
Foi
essa coragem que manteve as famílias mobilizadas na luta pelo seu
direito à terra e pela sua sobrevivência. Eles resistiram ao incêndio da
associação, ameaças de morte, a ordem de despejo e até ao assassinato
do Flaviano. A coragem sempre falou mais forte.
Dona
Antônia, com 90 anos, é a moradora mais velha do Charco, nasceu lá. O
fazendeiro chegou a abordar Dona Antônia oferecendo-lhe uma casa, desde
que ela desistisse da comunidade. Mas ela respondeu que não iria
desistir do que é dela. E, ao contar essa história, faz questão de dizer
que só sai da comunidade quando morrer, “no dia que Deus quiser”.
O
artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias diz que
“aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando
suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado
emitir-lhes os títulos respectivos”. Mas o direito que está garantido no papel não se concretiza na prática.
Em
outubro de 2009, a Fundação Palmares emitiu certificação reconhecendo o
quilombo do Charco. Com isso, se iniciou um longo – e ainda inconcluso –
processo para sua titulação. O Relatório Técnico de Identificação e
Delimitação (RTID), elaborado pelo INCRA, só foi finalizado em 2012. E,
apenas em março de 2014, foi publicada a portaria que reconhece e
declara o Charco como comunidade de remanescentes de quilombo.
A
saga pela titulação não acaba aí. A fase técnica do processo de
reconhecimento e titulação já foi superada. Agora, faltam os passos
administrativos que dependem, em grande medida, de vontade política e
priorização por parte das autoridades competentes.
A
lentidão no processo de titulação do quilombo do Charco teve algumas
consequências bastante negativas para a comunidade. A insegurança
jurídica a respeito de sua permanência resulta em uma precariedade na
lavoura, afinal, como investir na terra quando se está sujeito a
despejos e ataques de fazendeiros? Alguns moradores dizem que isso é
“lavoura de risco”, pois correm o risco de plantar, investir, mas perder tudo depois.
Mas
essa lentidão também apresenta outros riscos: o risco proveniente do
conflito agrário a que ficam expostos em decorrência desta insegurança
jurídica. Fazendeiros que querem tomar à força suas terras e, para isso,
ameaçam, atacam e até matam. E assim foi com a comunidade do Charco.
Infelizmente,
essa realidade não é uma exceção. O processo de identificação e
titulação de comunidades quilombolas no estado do Maranhão é bastante
lento. São cerca de mil comunidades quilombolas no estado, das quais
pouco mais de 400 já tiveram o certificado emitido pela Fundação
Palmares. Mas o número de comunidades que teve o RTID concluído não
chega a dez. O Charco é uma delas.
O
estado do Maranhão é marcado, também, por um histórico de conflitos por
terra e violência contra trabalhadores rurais e comunidades
quilombolas. Os dados divulgados pela Comissão Pastoral da Terra indicam
que 34 pessoas foram assassinadas em decorrência de conflitos por terra
no Brasil em 2013, sendo três delas no estado do Maranhão. Em 2014 –
até outubro – já foram cinco lideranças rurais mortas no contexto da
luta pela terra no estado.
No
Brasil, esse tipo de crime tende a permanecer impune. A CPT também
documentou que dos mais de 1.600 casos de mortes em decorrência de
conflitos no campo entre 1985 e 2009, apenas pouco mais de 90 foram
julgados. Os dados revelam um quadro chocante de impunidade.
O
assassinato de Flaviano Pinto Neto parece estar se encaminhando para
fazer parte desta estatística. Neste dia 30 de outubro faz quatro anos
que ele foi morto e até hoje o caso não foi a julgamento. Deveria ser
diferente. E poderia.
O
inquérito policial foi concluído em abril de 2011. Advogados que
acompanham o caso dizem que a investigação foi bastante completa e tem
todos os elementos necessários para que o caso seja julgado, já que
conseguiu produzir evidências e identificar os mandantes, o
intermediário e o executor do crime. Mas, desde então, o processo não
avançou. Não houve ainda a decisão de pronunciar os réus, levando-os a
julgamento.
Como disse
Zilmar Mendes, sobrinha de Flaviano e atual presidente da Associação de
Moradores, o “governo é que nem feijão, só vai na pressão”. Se,
na época, o inquérito policial avançou foi também devido a pressão
local e internacional para que o caso não permanecesse no esquecimento.
Até para garantir a exumação do corpo de Flaviano para realização de
perícia foi preciso que a comunidade fizesse vigília no cemitério onde
ele estava enterrado. Havia o risco de o corpo ser roubado antes da
exumação, impedindo assim a produção de mais provas acerca do crime. Por
duas semanas os moradores do Charco guardaram o túmulo até que a
exumação fosse feita.
Agora,
a comunidade luta para que o caso vá a julgamento. Dona Ana, irmã de
Flaviano, diz que “a justiça é mais do lado de quem tem dinheiro do que
de quem não tem nada”. Parece que não há justiça sem muita luta. E, às
vezes, nem assim.
Em
1994, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, lançou a Carta da Terra,
um texto-manifesto em defesa da reforma agrária, onde dizia que “no
Brasil a terra, também cercada, está no centro da história. Os pedaços
que foram democratizados custaram muito sangue, dor e sofrimento”.
Os
moradores do Charco sabem disso. Afinal, Flaviano foi morto na luta
pela terra. Terra que é deles por direito, mas que, na prática, lhes é
negada.
Não é possível
contar o fim dessa história. Ela só acaba quando a comunidade do Charco
receber o título de suas terras e quando os assassinos de Flaviano forem
devidamente julgados e responsabilizados. Enquanto isso, a história que
se escreve é a da perpetuação da injustiça e da impunidade.
Ainda
bem que há pessoas dispostas a lutar a vida inteira para mudar o rumo
dessa história. Mas que essa mudança venha logo, porque já se esperou
demais, já se sofreu demais, já sangrou demais.
(*) Renata Neder é assessora de direitos humanos da Anistia Internacional Brasil
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