“A
corrupção nas prefeituras municipais é um dos principais fatores para o
entrave do desenvolvimento no semiárido”, declara o agrônomo.
O sertanejo sabe conviver com a seca e, diante de um longo período de
estiagem, como o que se abate pelo semiárido brasileiro, faltam
investimentos governamentais para garantir qualidade de vida aos
agricultores. Diante desse cenário, o lema do governo de combater a seca
“é retrógrado”, enfatiza o agrônomo Márcio Moura à IHU On-Line. Segundo
ele, a “seca é cíclica, e devemos aprender a conviver com as
adversidades de um fenômeno que é natural”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Moura critica a
transposição do Rio São Francisco, e frisa que se trata de “mais uma
ilusão do governo, que acredita que se combate a seca com
superestruturas, em vez de investir nos sistemas familiares, que já
possuem uma dinâmica produtiva, a qual está relacionada com a segurança
alimentar, com a comercialização e com integração com o meio ambiente”.
Para ele, a cultura assistencialista presente no semiárido dificulta o
desenvolvimento da região. “As pessoas vendem o seu voto por uma carga
d’água de carro-pipa, remédios, cimento. Por causa desse sistema, são
eleitas pessoas com pouca capacidade de gerir em consenso com a
sociedade, mas com muita capacidade de enriquecer ilicitamente”,
assinala. Os programas governamentais, como Bolsa Família, Garantia
Safra, Bolsa Estiagem, complementa, auxiliam na compra de alimentos, mas
“não resolvem o problema, apenas transferem para a próxima geração,
pois não são políticas concretas, que consigam que esses excluídos
possam ter acesso aos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais.
Na verdade, é uma maquiagem”.
Graduado em Agronomia pela Faculdade de Ciências Agrárias de Araripina –
Faciagra, Márcio Moura é agrônomo da ONG Caatinga e coordenador do
Programa de Políticas Públicas. Confira a entrevista.
IHU
On-Line – Segundo notícias da imprensa, essa é a maior seca do
semiárido dos últimos 50 anos. Como os sertanejos enfrentam esses
períodos?
Márcio Moura – A região semiárida brasileira
secularmente vive ainda o dilema da “Indústria da Seca”. As populações
já diagnosticaram previamente quais as necessidades em relação às
estruturas hídricas, para garantir água para o consumo das famílias, dos
plantios e dos animais. São necessários investimentos dos governos
federal e estadual assim como aplicação dos recursos por parte dos
municípios, para que se construam açudes, barreiros, barragens,
perfuração de poços, sistemas adutores, a fim de que os agrossistemas
possam ter sustentabilidade no período de estiagem.
Por outro lado, a sociedade civil organizada, através da Articulação no
Semiárido Brasileiro – ASA(entidade criada em julho de 1999 como fórum
de organizações que atuam em prol do desenvolvimento social, econômico,
político e cultural do semiárido brasileiro), congrega atualmente cerca
de 750 entidades dos mais diversos segmentos envolvidos com essa
questão. Nela encontram-se organizações como as igrejas católica e
evangélica, algumas ONGs, associações comunitárias, sindicatos e
federações de trabalhadores rurais. Até este momento a ASA já viabilizou
a construção de mais de 300 mil cisternas de placas de 16.000 litros
para o consumo humano, o que vem diferenciando em relação à água de
qualidade para as famílias agricultoras. Esse vem sendo um grande apoio
para as famílias agricultoras que têm enfrentado a seca.
Para enfrentar os períodos relacionados à seca, muitos agricultores/as
investem na cultura da estocagem, ou seja, guardam água e alimento para o
consumo familiar. Através de técnicas e práticas como a silagem e
fenação, asseguram o alimento para os animais e usam água do barreiro,
poços e açudes para sustentarem o rebanho. Os que têm menos condições
ainda vendem os animais aos atravessadores no período mais difícil, que é
de junho a janeiro, e esperam chover no próximo janeiro para readquirir
os animais, quando finalmente se iniciam as chuvas no sertão.
IHU On-Line – Como o semiárido aparece na agenda governamental? O
governo brasileiro compreende quais são as necessidades e prioridades
para a região?
Márcio Moura – O governo de Dilma é muito tecnicista, é mais preocupado
com as metas, dialoga pouco com a sociedade civil organizada, tanto que
está desvalorizando o trabalho da ASA, que desenvolveu uma metodologia
participativa para implementar cisternas de placas de 16.000 e 52.000
litros, barragens subterrâneas, bombas populares e barreiros lonados.
Essas propostas deveriam ser valorizadas, pois entendemos que a obra
física deve vir agregada à construção do conhecimento técnico com o
saber das famílias. Nesse sentido, as instituições realizam momentos de
formação em agroecologia com as famílias, para que possam valorizar o
meio ambiente e desenvolver uma agricultura mais sustentável,
valorizando os saberes tradicionais.
Através do Ministro da Integração o governo federal está implementando
caixas de plástico – visando à campanha eleitoral de 2012 –, as quais
são fabricadas em São Paulo, ao dobro do custo das que são construídas
de alvenaria pelas famílias da região.
Outro equívoco, ainda do governo Lula e que continua no governo Dilma, é
a transposição do rio São Francisco. O governo investiu milhões nessa
obra, mas a inviabilidade está sendo demonstrada, pois o canal continua
seco, rachando, e o ministro Fernando Bezerra Coelho continua
solicitando mais recursos para consertar o que foi iniciado. É mais uma
ilusão do governo, que acredita que se combate a seca com
superestruturas em vez de investir nos sistemas familiares, que já
possuem uma dinâmica produtiva, a qual está relacionada com a segurança
alimentar, com a comercialização e com integração com o meio ambiente. O
lema do governo é retrógrado: “combater a seca”. Isso é uma ilusão,
pois a seca é cíclica, e devemos aprender a conviver com as adversidades
de um fenômeno que é natural. As famílias precisam de políticas para
estruturação de seus sistemas com mais recursos hídricos, acesso a
crédito, assessoria técnica mais qualificada, saneamento básico,
educação de qualidade, enfim, é isso que a zona rural no sertão ainda
precisa para que as famílias possam viver com mais qualidade e
dignidade.
IHU On-Line – Como o senhor descreve o desenvolvimento social e
econômico do semiárido brasileiro? A imagem de semiárido pobre e
subdesenvolvido ainda permanece ou já começa a fazer parte do passado?
Márcio Moura – Acredito que houve avanços sim. Hoje estamos num período
de seca, mas não há invasão a feiras livres. Existem os programas
governamentais como o Bolsa Família, Bolsa Estiagem, Garantia
Safra, Programa Brasil Sem Miséria, que são paliativos, mas acabam
auxiliando na compra de alimentos. Esses são programas que não resolvem o
problema, apenas transferem para a próxima geração, pois não são
políticas concretas, que consigam que esses excluídos possam ter acesso
aos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais. Na verdade, é uma
maquiagem.
Mas não podemos generalizar, pois há o trabalho focado na agroecologia que a ASA vem
desenvolvendo, inclusive com o Ministério do Desenvolvimento Social, no
qual os agroecossistemas familiares foram estruturados, e as famílias
consomem produtos livres de agrotóxicos, garantem a segurança alimentar,
e o excedente comercializam na comunidade e na zona urbana, através das
feiras agroecológicas. O semiárido ainda é feito de contratastes.
IHU On-Line – Quais são hoje os principais impasses ao
desenvolvimento do semiárido? Além da concentração da água e a terra,
que aspectos destaca?
Márcio Moura – Há uma cultura assistencialista, em que os aspectos
eleitorais não são valorizados e na qual as pessoas vendem o seu voto
por carga d’água de carro-pipa, remédios, cimento. Por causa desse
sistema, são eleitas pessoas com pouca capacidade de gerir em consenso
com a sociedade, mas com muita capacidade de enriquecer ilicitamente. A
corrupção nas prefeituras municipais é um dos principais fatores para o
entrave do desenvolvimento no semiárido, apesar de as organizações da
sociedade civil organizada apoiar no trabalho com as associações. Ainda
falta um despertar sobre a questão do voto, ou seja, são os velhos clãs
que dominam a política local, passando de geração para geração. Há
desvios nos recursos da saúde, educação, agricultura.
IHU On-Line – Há risco de desertificação do semiárido?
Márcio Moura – O agronegócio e muitas famílias agricultoras realizam
práticas como as queimadas e o uso desenfreado de agrotóxicos, o que vem
causando danos à fauna e à flora. Já existem extensões de áreas como a
do município de Gibués, no Piauí, que estão em processo de
desertificação devido ao uso inadequado do solo. Segundo dados
da Embrapa, 45% da área da vegetação da Caatinga já foi devastada.
Portanto, isso é um sinal de que boa parte do solo está descoberta e
exposta às chuvas, sol, e vento, que são os principais vetores da
desertificação. Não existem programas ou políticas públicas voltadas
para a revitalização de rios e riachos, nem de reflorestamento. Esses
investimentos custam caro para serem realizados, mas é necessário
avançar nos trabalhos educativos no sentindo da preservação, pois no
campo jurídico existe uma boa legislação de preservação ambiental, mas
não há punição.
IHU On-Line – Como a agroecologia tem sido desenvolvida no
semiárido? Em que medida ela contribui para o desenvolvimento humano e
sustentável de famílias agricultoras do semiárido brasileiro?
Márcio Moura – A agroecologia é um movimento crescente que precisa de
mais apoio governamental, no sentindo da implementação da Política
Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural, para que os técnico/as
possam apoiar as famílias campesinas em relação a uma agricultura menos
danosa e mais autossustentável. Quando se discute agroecologia, a
família tem que estar envolvida, valorizando o papel e conhecimento dos
jovens, das mulheres e dos homens, considerando também o conhecimento do
técnico, pois é nesse intercâmbio de informações que se processa um
novo conhecimento, em que o agroecossistema é visto de forma sistêmica, e
que todos os sistemas de criação de animais, cultivos, frutíferas,
hortaliças se integram através da biodiversidade, onde cada sistema
auxilia o outro. A agroecologia já tem suas raízes fincadas
no semiárido, com processos construídos com as famílias, processos esses
sistematizados e socializados para as mídias televisivas, radiofônicas,
blogs, redes de organizações. Até o governo está começando a se
interessar.
IHU On-Line – Em que consiste a proposta de implantar sistemas
agroflorestais como alternativa sustentável de produção no semiárido?
Márcio Moura – O sistema agroflorestal é uma das propostas das entidades
que desenvolvem o trabalho com a agroecologia. É uma forma de cultivo
diversificado, em que mantém árvores nativas, e se faz podas para que a
luz possa entrar e, assim, se possam cultivar frutíferas, hortaliças,
plantas medicinais, roçados, capins, enfim, plantas que possuem simbiose
e que possam estar no mesmo espaço. Nesses sistemas, o solo fica
protegido e mais nutrido, as famílias ampliam a diversidade de alimentos
para o consumo e para os animais. Nessa forma de cultivo não se utiliza
queimadas, e é abolido o uso de agrotóxicos. As famílias também
desenvolvem os quintais produtivos, onde cultivam ao redor da casa e
complementam a produção e a geração de renda.
IHU On-Line – Qual a importância da Caatinga na preservação do semiárido brasileiro?
IHU On-Line – Qual a importância da Caatinga na preservação do semiárido brasileiro?
Márcio Moura – A Caatinga é um dos biomas mais complexos e ricos do
mundo, há uma biodiversidade de plantas e animais que só existem no
Brasil. Se bem manejada, a Caatinga fornece alimento para as famílias e
para os animais, é uma fonte enorme de estudos para a medicina, onde se
disponibilizam princípios ativos de plantas exclusivas para elaboração
de remédios. Além da beleza e da capacidade de regeneração quando
ocorrem as primeiras chuvas.
IHU On-Line – Quais são as principais reivindicações da Declaração do Semiárido, formulada durante a 1ª Conferência Regional de Desenvolvimento Sustentável do Bioma Caatinga?
IHU On-Line – Quais são as principais reivindicações da Declaração do Semiárido, formulada durante a 1ª Conferência Regional de Desenvolvimento Sustentável do Bioma Caatinga?
Márcio Moura – Em Fortaleza-CE, representantes de mais de 300
organizações governamentais e não governamentais discutiram e aprovaram a
Declaração do Semiárido, durante a 1ª Conferência Regional de
Desenvolvimento Sustentável do Bioma Caatinga. O documento apresenta uma
série de compromissos e algumas reivindicações importantes, como a
inclusão do bioma Caatinga como patrimônio nacional e a aprovação
no Congresso Nacional da Política Nacional de Combate e Prevenção à
Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca. A Declaração foi
apresentada nos eventos paralelos da Conferência das Nações Unidas sobre
Desenvolvimento Sustentável – Rio+20. Uma das principais bandeiras é a
universalização do acesso à água. Entre as ações pontuadas no documento
estão o incentivo à implantação de sistemas agroflorestais como
alternativa sustentável de produção, a priorização da agricultura
familiar sustentável e o fomento a linhas de crédito oficiais para
atividades sustentáveis na Caatinga.
http://www.ihu.unisinos.br
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