Ao contar o passado, pela epopeia
dos Irmãos Villas Bôas, o filme “Xingu” ilumina o presente. E coloca a
plateia diante de uma questão atual e incômoda: omissão também é
protagonismo
Eliane Brum
Xingu, o filme de Cao
Hamburger, conta a saga dos três irmãos Villas Bôas em seu confronto com
o Brasil que não sabia que era Brasil. Nos anos 1940, Orlando (Felipe
Camargo), 27 anos, Cláudio (João Miguel), 25, e Leonardo (Caio Blat),
23, mentiram que eram analfabetos sem profissão para se alistar na
Expedição Roncador-Xingu, que desbravaria o centro do país. O que
acontece a partir do momento em que três jovens de classe média partem
em busca de aventura e encontram de forma brutal não só uma outra
civilização, mas também a si mesmos, é História. E, infelizmente, uma
história que vai sendo esquecida. Mas, ao iluminar o passado, Xingu,
o filme, ilumina Xingu, a vida. E o ilumina para além do Parque
Nacional do Xingu, o grande feito dos Irmãos Villas Bôas, consumado em
1961. Ilumina com verdades suficientes para questionar a plateia em
outras verdades: por que permitimos, pela omissão da maioria, que a
faraônica obra de Belo Monte – aqui, agora – destrua uma das maiores
riquezas culturais e biológicas do planeta? Por que, em um governo dito
popular, se reedita o autoritarismo para impor um elefante branco da
democracia, com a nossa cumplicidade? A plateia que assiste ao filme
precisa responder, ao deixar a sala de cinema, a uma pergunta bem
incômoda: por que, na vida, não consegue deixar de ser plateia.
O filme termina quando a Transamazônica
começa a ser construída. Naquele momento, com uma imprensa censurada
pela ditadura e um país dominado pelo ufanismo do “Brasil ame-o ou
deixe-o”, do “Integrar para não Entregar”, do “Terra Sem Homens para
Homens Sem Terra” talvez só Orlando e Cláudio Villas Bôas – além do
governo militar e de seus apoiadores – eram capazes de compreender o que
aconteceria quando a estrada rasgasse a selva e literalmente a
encharcasse de sangue. Hoje, não. Nenhum de nós tem a desculpa de não
saber o que já aconteceu. Nenhum de nós tem a desculpa de ignorar a
destruição da floresta e a matança de gente, bicho, planta e cultura
consumada no Brasil Grande da ditadura militar. Nenhum de nós tem a
desculpa de ignorar a ocupação incompetente e a trilha de mortes que só
faz aumentar. Não há desculpa para a ignorância do passado. E penso que
não há desculpa para a omissão no presente, diante do futuro.
Quando a Transamazônica se desenhava na
tela, era Belo Monte que estava bem ali. Assisti ao filme enxergando o
presente, e não apenas o passado – e por isso saí do cinema devastada.
Vi o passado enxergando o presente porque o passado tornou-se, de novo,
presente. E é com esse presente que temos o desafio de lidar. Quando a
Transamazônica foi imposta pela ditadura militar, boa parte dos vivos de
hoje nem sequer tinha nascido ou ainda era criança, como eu. Agora,
não. Estamos todos aqui.
Conhecer a Amazônia exige um movimento – e um desejo maior. Assistir ao filme é muito fácil. Se puderem, assistam ao Xingu e,
na última cena, uma das mais belas do nosso cinema, se enfiem na pele
de um dos Irmãos Villas Bôas e percebam que, querendo ou não, é diante
desse olhar que nós todos estamos – agora.
Acho que este é o mérito dos grandes
filmes: não permitir que nos instalemos no conforto eterno da poltrona
de cinema. Tornar impossível o pensamento comodista de que aquilo não
nos diz respeito – seja porque já aconteceu, seja porque é a dor de um
outro muito diferente. Ou ainda porque não nos convém – e nos
acreditamos a salvo. E aqui não se trata da arte utilitarista ou
engajada, mas do fato de que os bons filmes, assim como a boa
literatura, nos confrontam com pessoas complexas num mundo complexo – e
não meros heróis em um mundo plano. Como quando Cláudio Villas Bôas diz,
ao perceber que, salvando, ele também destrói: “Somos o veneno e o
antídoto”. Ou: “Há uma coisa deles que morre pra sempre assim que a
gente encosta”.
É por acolher o conflito que os bons
filmes, mesmo que nos contem de mundos e de gentes distantes, ecoam na
vida de todos nós. Pescam nossos demônios internos e os fazem dançar
diante dos nossos olhos. Os bons filmes, como os bons livros, nos
transtornam por dentro, mesmo que ninguém fique sabendo porque só a nós
diz respeito; e nos transtornam de dentro para fora, como neste caso, ao
percebermos que a omissão também é um tipo de protagonismo. Os bons
filmes são como os bons governos: acolhem o conflito e dialogam com o
contraditório. Os maus filmes são como os maus governos: calam os
conflitos e chamam o contraditório de “fantasia”. Xingu é um bom filme.
Os realizadores de Xingu já
tinham deixado explícita a intenção de, ao contar a epopeia histórica
dos Irmãos Villas Bôas, criar uma oportunidade para pensar sobre os
dilemas do Brasil atual. “Se o filme conseguir trazer a história desses
caras para uma discussão do futuro e do presente seria muito legal.
Apesar de ser um filme de época, é muito contemporâneo. Uma das coisas
que me encantaram nessa história foi essa possibilidade de discutir
coisas contemporâneas contando uma história do século passado”, disse à
imprensa Cao Hamburger, o diretor, durante o lançamento do filme. E, em
outro momento: “A ideia é que a gente repense a maneira como somos. O
que é o progresso hoje? Que crescimento a gente quer?”.
Também os atores, ao viverem o Xingu para encenar o Xingu,
confrontaram-se com os conflitos vividos por seus personagens – mas
também os incorporaram como cidadãos diante da experiência para além da
filmagem. “Os Villas Bôas fizeram uma previsão: que o encontro (entre
brancos e índios) era inevitável e a civilização ia chegar à fronteira
do rio. E eles chamavam isso de ‘abraço da morte’. De avião a gente vê
claramente a devastação ao redor. Então esse ‘abraço da morte’ chegou”,
contou Caio Blat. “Não teve um dia de filmagem que não vimos fumaça de
queimada. Até o set queimou, a equipe toda ajudou a apagar o fogo. E
isso acontece sempre: aconteceu quando filmamos, aconteceu no ano
passado, vai acontecer este ano de novo”, afirmou Felipe Camargo. “A
ecologia não pode mais ser vista como uma coisa bonitinha, ‘vamos
preservar a natureza’. Não: vamos preservar a nossa vida.”
Ao refletir sobre a experiência de filmar Xingu
no Xingu, Cao Hamburger declarou: “Considero que essa cultura e essa
filosofia de vida deles não estão paradas no tempo, elas estão em
desenvolvimento, como a nossa. O que está me interessando muito é o que
nós podemos aprender com essa cultura. O Brasil tem um tesouro que faz
questão de esconder e desprezar, e está perdendo a oportunidade de
absorver e aprender com eles. A cultura deles é muito rica, muito
sofisticada, e o Brasil tem muito a ganhar”.
O cineasta Fernando Meirelles, produtor do Xingu,
foi contundente em suas afirmações ao longo da série de entrevistas
sobre o filme: “O que eu acho que vale ressaltar do filme é como ele é
atual. Vindo para cá, eu li no jornal que o Megaron Txucarramãe, que era
coordenador da Funai no norte do Mato Grosso, tinha sido demitido
porque tem uma posição contrária a Belo Monte (outubro de 2011). É a
história do filme, da Transamazônica, se repetindo. O filme não poderia
ser mais atual, nesse momento em que Belo Monte e o Código Florestal são
assuntos muito fortes”. E, mais tarde: “Eu, pessoalmente, acho que Belo
Monte é um dos maiores erros atuais. A gente está construindo usinas
basicamente para poder aumentar a produção de alumínio. Vai comprometer
toda aquela área pra produzir mais alumínio. É esse o progresso que
queremos?”.
Em outra manifestação, Fernando
Meirelles foi ainda mais direto: “A Transamazônica do filme é a Belo
Monte de hoje. Aquele deputado de terninho é a Kátia Abreu (senadora da bancada ruralista pelo PSD/TO).
Isso está muito claro”. No filme, há ainda um militar que é a cara
desse governo no trato de Belo Monte e das questões ambientais. Só não
gritei – “Nossa, é a Dilma Rousseff!” – porque faço uma campanha
persistente pelo silêncio no cinema. Quando Orlando Villas Bôas tenta
explicar que a Transamazônica vai passar por cima dos Kren Akarore, uma
etnia isolada, o militar declara: “Limpe o caminho. Mas tem que ser
rápido”.
Há de se eliminar aquilo que “atravanca”
o progresso ontem, o desenvolvimento hoje – tirar da frente, custe o
que custar. “Resolver”. E rápido. Como a História mostrou, dos 600 Kren
Akarore restaram 79 depois da abertura da Transamazônica. Ou seja: o
efeito da Transamazônica, apenas sobre uma única etnia indígena, foi um
genocídio de mais de 500 seres humanos. E a Transamazônica até hoje é
uma picada intrafegável boa parte do ano, apelidada por onde passa de
“Transamargura”. As obras de Belo Monte começaram – sem o cumprimento
das condicionantes ambientais – e o estrago já é visível.
Entre os desafios que um futuro biógrafo
enfrentará ao contar a vida e a obra de Dilma Rousseff está o seguinte
paradoxo: como uma mulher que entrou na clandestinidade, pegou em armas
para lutar contra o autoritarismo e pagou pela sua coerência o preço
altíssimo de ter sido torturada vira uma ministra, primeiro, uma
presidente depois, que, em se tratando de políticas para a Amazônia e o
meio ambiente, incorpora – e o pior, implanta – a mesma visão da
ditadura militar que combateu. De novo, estamos de volta ao Brasil
Grande que pensa pequeno – mas em plena democracia e numa imprensa sem
censura oficial. Acho o paradoxo fascinante do ponto de vista humano,
mas um desastre para o país.
Talvez, hoje, a presidente Dilma
Rousseff passasse um pito na guerrilheira Dilma Rousseff: “Não há espaço
para a fantasia”. E imediatamente esquecesse que foi essa “fantasia”
que tornou possível não só a própria democracia, mas a ascensão de um
operário à presidência do Brasil. E também a tudo o que veio depois –
inclusive ela. Foi essa mesma frase, em minha opinião a mais infeliz de
sua trajetória como presidente, possivelmente de sua vida, que Dilma
Rousseff declarou aos ambientalistas que combatem Belo Monte, no início
de abril, afirmando que não mudará sua política de “desenvolvimento”
para a Amazônia. O que nos faz concluir que, diante dos Irmãos Villas
Bôas, os indigenistas de ontem, Dilma Rousseff só poderia dizer o mesmo
que diz para os indigenistas de hoje: “Não há espaço para a fantasia”.
Cara presidente, se não existisse
“fantasia” não existiria humanidade – não existiria nem mesmo o conceito
de nação. Como disse Fernando Meirelles, no site da produtora O2
Filmes: “Sonhe um pouco, presidenta. Ou ao menos escute o sonho dos que
conseguem sonhar”.
http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/04/volta-do-brasil-grande-que-pensa-pequeno.html
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