terça-feira, 5 de abril de 2011

Geraldo Iensen comenta o Livro "AS CHAPADAS E OS BACURIS", de Mayron Régis


Amar o Brasil é a amar a Terra, os brasileiros, os índios, as árvores, as onças que esturram nas praias do rio das Mortes, os tatus que se enterram nos cerrados. Como amar essas coisas tão intocáveis? Eu conto: amar tudo isso é sobrevoar embasbacado o meu amado Goiás e ver seu chão coberto de intervenções humanas em larga escala; é atravessar as estradas vermelhas do Mato Grosso e sofrer ao ver a soja invadindo os buritizais e o paricá se tornar tapete no Pará; é passar pela região do Maracaçumé, no Maranhão e ver com amargura que o lindo rio agoniza e que a floresta amazônica sumiu sem deixar vestígio. Amar o Brasil é sentir-se feliz com o calor úmido da comunidade São Raimundo, escondida no meio do nada na chapada, nas nascentes do rio Preguiças.


É uma tristeza ver o cerrado coberto de eucalipto. Mas como compreender essa tristeza? Leia esse livro: As chapadas e os bacuris, do jornalista Mayron Régis. Já escrevi sobre o trabalho desse autor, sua empreitada junto ao Fórum Carajás na defesa do cerrado. Embora eu me pareça mais o Quixote e ele mais o Sancho, sinto tanto esse papel invertido quando participo de suas jornadas. Talvez Baudelaire me chamasse Dandi, não sei do que chamaria Mayron, mas essa relação social artificial que imperana Modernidade, Baudelaire anteviu há bem mais de cem anos. Ou seja, a história é simples, tá aqui, na nossa cara. Mayron expõe nessas pouco mais de cem páginas as relações nefastas, irresponsáveis, corruptas que traçam os grandes projetos econômicos com o poder estatal, na implantação de um projeto desigual e injusto para as populações tradicionais locais, ou seja: os grandes projetos assumem a terra e as populações saem dela.


E o que o amor tem com isso? Nada a ver com romantismo, patriotismo, ou ufanismo.Mas é assim que os textos do livro se desenrolam: com amor. Não uma paixão pela luta, pela “defesa do meio ambiente”, nada assim, nenhum nome assim. Talvez seja difícil explicar com palavras, ou talvez fosse ainda com a potência de uma produção cinematográfica norte-americana; mas é fácil, pelo menos quando se está ali na Chapada, na comunidade São Raimundo vendo a Francisca, líder comunitária, cantar um hino que fez pra Mayron, e vê-lo avermelhar-se. Vê-lo ser chamado de amigo. Aquilo não é nada além de um largoensinamento do que é a vida; mais que um conflito entre Hegel e Cioran, que me ensinaram tão menos que uma viagem à chapada e seu povo simples.


Os textos do livro são um mosaico, assim como o cerrado com suas comunidades, se constrói no solo do maranhão, Estado que abriga (mal) o povo que explorou, uma vez que grande parte dessas comunidades é constituída de remanescentes de quilombos, as que não são, configuram-se como tantos outros explorados e esquecidos do país. Situação que é tão bem lembrada em alguns textos, como no que fala da Caravana da Cidadania de Lula, candidato a presidente, no ano de 1994. Nesse texto vemos as soluções fajutas para os problemas dos estados, soluções que como todas, visam unicamente a resolver os “problemas” dos mandatários, que querem sempre um quinhão maior. As populações? Essas que deem o seu jeito.


Há uma apresentação claríssima da sedução por poder econômico (por dominação tecnológica – de manejo da terra, das leis – do amasio com o projeto liberal de partes do poder público) através da narração (nada linear) de fatos ocorrido nas mais diversas comunidades, do Alto Parnaíba ao Munin. Nesse tema é certeiro quando escreve:

“Seguindo uma tendência totalitária da vida moderna, os setores agroexportadores querem virar as páginas da história rapidamente e assim, quem sabe, recomeçá-la de uma página em branco ou remontá-la com trechos apócrifos. A boca enche ao conjurar verdades cientificastais como os memorandos verbais do ministro da agricultura Reinold Stephanes e da senadora Kathia Abreu que execram o código florestale etc.De algum lugar do país, o ministro e a senadora defendem o Estado mínimo quando se refere à defesa do meio ambiente e o Estado máximo quando se refere a incentivos fiscais para os produtores rurais como se fossem versões tupiniquins de um santo-liberal europeu ou americano do pau-oco”.


            Nesse mosaico o que se sobressai para análise do leitor é o corpo inteiro da comunidade, sua formação, sua atuação, seus potenciais. O texto é muito enxuto, são poucas linhas, cheias de poesia e de informação (de base). Isso mesmo:POESIA! Como o autor, um jornalista, consegue isso? É o talento raro, de um tipo raro de profissional, que pode se juntar a mais quatro camaradas para, num Fiat uno, percorrer centenas de quilômetros nas estradas maranhenses, que, como é sabido de todos, são as piores do país. Quem anda de Hylux são os assessores da Suzano.


As assertivas dos textos são sempre em tons certeiros; preenchem o corpo do livro como um índio mostra o caminho na mata pra um imberbe: “tá ali, ó, não tá vendo?!”. São trechos como “os desmatamentos das Chapadas no cerrado sul-maranhense atingem principalmente o extrativismo de frutas praticado pelas comunidades”; ou “os desmatamentos no Baixo Parnaíba maranhense se devem à falta de regularização fundiária e ambiental por parte dos governos federal e estadual e pela pressão das siderúrgicas da Amazônia oriental que fornecem ferro-gusa para os Estados Unidos”.


 
Um texto no qual a realidade mais se estampa seria: “... o funcionário da Suzano acercou o Sebastião por duas horas com sugestões do tipo “Digam o que querem. Querem educação, saúde ou produção?”. “O gestor municipal responde por essas áreas e não vocês.” - respondeu Sebastião”. Porque é nessa relação que o homem simples das chapadas se perde. Ele sabe das funções do estado, mas o estado oferece ao capital a possibilidade de barganha. É como se o aliciador de terras se oferecesse pra mediar o desenvolvimento das comunidades, através de sua bondade e de seu acesso ao poder público. Muitos se entregam, como Mayron mostra. Nem tudo é vitória.

A batalha pela conservação é grande e uma das características que o autor nos mostra é a impiedade com que se golpeia o adversário, como o cansaço não faz parte da luta, como a visão é otimista frente a tão poderoso inimigo: esse, o capital, a grande empresa, o agronegócio, essas instituições “tão sem cara”, que avançam sobre tudo que é tradicional e ameno.

São variados os caminhos percorridos pelo livro, desde análises amplas e gerais, sobre grandes movimentações financeiras, grandes investimentos (a monarquia das commodities), até a situação precária das comunidades por excesso ou falta de chuva, ausência de escola ou medicamentos, cada um na sua hora. Poderia escolher entre muitos pra encerrar esse breve comentário com uma citação. Tudo é motivo de interesse, tudo tem uma razão de ser e de estar, tudo caberia; escolho terminar questionando, baseado na obra de Mayron, a validade de estarmos raspando o cerrado, matando as nascentes dos rios e expulsando as populações locais pra sustentar de papel as necessidades imensas da China.

Há quem levante a voz contra isso. A arma é a verbo, e, como essência da vida, é arma honesta. Dentro do verbo a poesia, essência do homem.

Por: Geraldo Iensen – jornalista e escritor
http://territorioslivresdobaixoparnaiba.blogspot.com/

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