Para o vice-presidente da CI-Brasil, os biomas brasileiros estão conectados e precisam ser igualmente preservados
THAÍS HERRERO
30/07/2015 - 19h04 - Atualizado 30/07/2015 19h04
A relação entre Cerrado e Floresta Amazônica ganha destaque porque 38% do que é bioma Cerrado está dentro dos limites estabelecidos como Amazônia Legal - uma demarcação política e não ambiental que abrange nove estados brasileiros (como mostra a ilustração abaixo). Tanto nessa porção de Cerrado quanto nos outros 62% encontramos intensa atividade agrícola e, consequentemente, desmatamentos. Para Medeiros, a proteção do Cerrado deveria ganhar mais atenção. Ele afirma, no entanto, que há muitos anos, os holofotes da causa ambiental se voltam apenas para a Floresta Amazônica. “Olhamos pra um lado e esquecemos o outro porque o desmatamento no Cerrado foi muito mais acelerado”, diz. Um exemplo disso é que o país monitora as derrubadas ilegais da floresta amazônica desde o final dos anso 1980. Para o Cerrado, os satélites só foram direcionados em 2002. Leia a entrevista completa.
ÉPOCA: Estudos recentes mostraram que o Cerrado sofreu uma forte devastação de sua paisagem nos últimos 30 anos, com índices de desmatamento tão preocupantes quanto os da Floresta Amazônica. Mas não parece receber tanta atenção. Por que isso acontece?
Rodrigo Medeiros: Nos últimos 30 anos, concentramos os esforços de proteção ambiental na Floresta Amazônica porque havia uma pressão internacional forte para que o Brasil não deixasse repetir ali o que aconteceu com a Mata Atlântica. Olhamos pra um lado e esquecemos o outro porque o desmatamento no Cerrado foi muito mais acelerado. A maior parte das áreas desmatadas foi convertida para uso agrícola sem controle e monitoramento. Desenvolvemos toda uma tecnologia avançada de satélites que monitoram a Amazônia desde 1988, mas o desmatamento na porção de Cerrado que não está na Amazônia Legal só passou a ser avaliado sistematicamente a partir de 2002.
ÉPOCA: Então agora, estamos mais atentos ao Cerrado?
Medeiros: A compreensão da importância ecológica do Cerrado é relativamente recente. Só nos anos 1990 a Conservação Internacional o classificou como um hotspot de biodiversidade. A visão tradicional era a de um ambiente menos nobre, cuja vocação era ser substituído por pasto e plantação. Hoje, entendemos sua importância. Até mesmo o agronegócio já compreende que não pode converter tudo para área plantada, sob pena de comprometer serviços ecossistêmicos fundamentais como provisão de água e estabilidade do clima.
ÉPOCA: Existe alguma conexão entre o desmatamento da Floresta Amazônica e o do Cerrado?
Medeiros: Sim, desde sempre. Na floresta tropical, a pressão para o desmatamento teve forte correlação com o avanço da fronteira agrícola do Cerrado. A devastação e os problemas amazônicos poderiam ser menores se tivéssemos olhado para o Cerrado 30 anos atrás. Grande parte do desflorestamento dos últimos 20 anos na Floresta Amazônica se concentrou no Arco do Desmatamento e nos eixos das principais rodovias. A origem é um processo de expansão da atividade agrícola e pecuária no Cerrado iniciada nos anos 1970.
ÉPOCA: O que impulsionou o Arco do Desmatamento?
Medeiros: São vários vetores. Há a abertura das rodovias e estradas secundárias, o incentivo a colonização nas décadas de 1970 e 1980, as grandes obras de infraestrutura e a ocupação fundiária desordenada. O principal foi a ocupação para a produção agrícola e pecuária no Cerrado. E a expansão da soja teve efeito importante. Conforme os produtores viam que o grão era mais lucrativo que a criação de gado, iam substituindo a atividade e empurrando os bois cada vez mais para a borda sul da Floresta Amazônica. Não houve uma política adequada para ordenar a produção agrícola e pecuária na região de modo que pudesse garantir maior conservação da floresta, apesar de o Código Florestal existir desde a década de 30.
ÉPOCA: E o perfil dos desmatamentos nessa região do arco sempre foi o mesmo?
Medeiros: Não, isso mudou ao longo dos anos. No início da expansão do arco, a maioria dos desmatamentos era em grandes áreas. Aí, o governo federal aumentou as ações de fiscalização com apreensões e multas e o Ministério Público Federal instituiu o Termo de Ajuste de Conduta para que os frigoríficos não comprassem mais bois de áreas desmatadas. Houve também a Moratória da Soja, que impedia seu plantio em áreas irregulares. Isso está funcionando bem, mas não podemos relaxar. Hoje, as derrubadas são mais frequentes na pequena escala. O pequeno agricultor e os assentamentos, que antes eram os responsáveis por desmatamentos quase que invisíveis, já chamam atenção e são contabilizados.
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ÉPOCA: Qual a importância do Cerrado?
Medeiros: O Cerrado é chamado de caixa d´água do Brasil porque todos os grandes rios nascem ali. E olha só uma contradição desse bioma: grande parte do PIB agrícola do Brasil está no Cerrado, ao mesmo tempo em que todo o restante do PIB que não é agrícola depende do Cerrado porque depende das águas que brotam dali. Além disso, é um dos ambientes com maior biodiversidade no planeta. E isso está conectado a uma diversidade humana e cultural valiosíssima, guardiã de saberes ancestrais do sertanejo brasileiro.
ÉPOCA: Existe uma porção considerável de Cerrado dentro dos limites da Amazônia Legal. E o Código Florestal divide a permissão para desmatar de acordo com essa localização. As propriedades dentro da Amazônia Legal podem desmatar até 65% de suas terras. As que estão fora, podem desmatar 80%. Essa diferenciação foi justa para o Cerrado como um todo?
Medeiros: De certa forma não. A demarcação da Amazônia Legal foi feita nos anos 1950, com um olhar político para orientar subsídios ao desenvolvimento da região norte. Não houve conotação ambiental envolvida e nem se levou em consideração os limites do bioma Amazônia. Tanto que a demarcação incluiu áreas de Cerrado. Isso ocorreu porque fazer parte da Amazônia Legal significava receber incentivos e subsídios do governo. Todo mundo queria estar lá. E o governo acabou incluindo áreas que não eram bioma Amazônia, mas tinham baixo desenvolvimento, como o norte do Mato Grosso. O pessoal dizia “é uma área pobre, precisamos deixar o dinheiro chegar ali também” e pronto.
ÉPOCA: Qual o resultado disso hoje?
Medeiros: Temos agora municípios com vegetação típica de Cerrado, mas que são divididos pela linha da Amazônia Legal e possuem duas determinações diferentes sobre o quanto podem desmatar – já que no Cerrado pode-se derrubar mais que na Floresta Amazônica. E as áreas de Cerrado fora da Amazônia Legal podem ser desmatadas ainda mais. Do ponto vista ecológico, não faz sentido. É comum ouvir que a parte do Cerrado incluída na Amazônia Legal funcionaria como uma zona tampão, criando um gradiente de limitação importante para proteger a o que é do bioma Amazônia. Isso também não faz o menor sentido, pois deveríamos olhar para o Cerrado com um bioma completo e não como uma unidade fragmentada por um limite geopolítico que nada tem a ver com os processos ecológicos da região. Se essa lógica fosse verdadeira, por que não há regiões de Cerrado funcionando como tampão para a Caatinga e para a Mata Atlântica?
ÉPOCA: Ainda dá tempo de proteger o Cerrado como o bioma merece?
Medeiros: Com certeza ainda há tempo, mas precisamos de planejamento e ordenamento territorial para garantir a proteção, conservação e uso sustentável da vegetação nativa e dos recursos naturais. Não há contradição alguma em ter produção agrícola no Cerrado e ter proteção ambiental. Ninguém, nem mesmo grande parte do setor agrícola, aceita mais produzir destruindo. Precisamos democratizar as tecnologias de produção para que mais produtores possam intensificar o uso das áreas de Cerrado já aberta e promover também a restauração de áreas desmatadas.
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