Eles se empenharam em uma jornada entre Santa Quitéria, Baixo Parnaíba maranhense, e o rio Parnaíba, num feriado de sete de setembro de 1987, pedalando por uma estrada de terra e em menos de uma hora avistaram-no. Os vizinhos da família de um deles emprestaram quatro bicicletas para que trilhassem a extensão da cidade ao rio – numa cidade pequena como Santa Quitéria sobravam bicicletas, nas quais seus donos carregavam de mercadorias maiores a mercadorias menores e pelas quais avisavam um ou outro de algo importante.
Na manhã de um silencioso e prestativo Cerrado das antigas, em um sete de setembro pouco patriótico, quatro rapazes e suas bicicletas emprestadas emendaram num trajeto que por vezes era o mesmo que outros, anteriormente, haviam encerrado em breves visitas para detalhar o patrimônio que herdariam ou para supliciar os pequenos agricultores, que retiravam seu sustento daquelas terras, negando-lhes permissão para plantarem arroz, feijão e mandioca e para cortarem uma árvore, portanto nesse dia, o trajeto de Santa Quitéria ao rio Parnaíba, na dureza do chão e na teimosia das fazendas amortecidas, cobraria deles a sua irreverência, o seu atrevimento e o seu vigor juvenis e, em troca, resguardá-los-ia na perenicidade do rio – ataviado por uma currutela de municípios, pequenos e médios, e povoados providos de gratidão.
Eles se atreveram a pisar no chão do Baixo Parnaíba, pela primeira vez, com quase nada que reverenciasse a população mais depauperada da região a não ser o simples fato que parentes e amigos de escola residiam em Chapadinha, Brejo e Santa Quitéria, todavia um deles retornaria à São Luís com mais do que uma simples menção aos nomes das cidades, pelas quais o ônibus transitava assiduamente todo santo dia – acossados pelo desmatamento das matas ciliares e pela concentração de terras, o rumorejar daquela parte do Baixo Parnaíba e o vagar daquele trecho do rio se dependuraram em sua memória da mesma forma que ele se dependurara no ônibus lotado de Santa Quitéria a São Luís sem dormir um minuto sequer toda a noite – a noite insone, na qual as lagoas assoviavam por sobre os telhados das casas e da igreja matriz da cidade de Brejo abrangendo justamente aquelas bandas de Santa Quitéria de onde o rumorejar do Baixo Parnaíba e o vagar do rio saíram dependurados na memória de alguém que recusava a concepção de metros e metros de arame farpado restringindo o passeio das pessoas à beira da estrada e a um barranco de rio – ademais idéias fervilhavam em sua cabeça com a leitura de “O que é o capitalismo”, coleção Primeiros Passos, editora Brasiliense.
Na sua cabeça, a estrada de piçarra, as bicicletas, os metros e metros de arame farpado, o barranco do rio Parnaíba e a noite insone desvirtuariam as verdadeiras tensões sócio-econômicas da cidade de Santa Quitéria e de outros municípios do Baixo Parnaíba maranhense – Urbano Santos, Chapadinha, Anapurus, Mata Roma, Buriti, Santa Quitéria, São Bernardo e Magalhães de Almeida : a das disputas de famílias tradicionais pelos cargos de prefeito e de vereadores, o desvio de recursos públicos por parte dessas famílias e o empobrecimento de parte da população que migrou da zona rural para a zona urbana, causada pela concentração de terras.
Nesse tipo de estrutura social, em que grupos políticos representando diferentes famílias poderosas apertam daqui e dali os recursos do Estado e deixam as sobras para a coletividade, o agronegócio do eucalipto e da soja se enraizou de um modo que o Cerrado se enrijeceu para qualquer experiência de agricultura familiar e de agroecologia nas próximas décadas.
A empresa Margusa, fundada em 1985 por empresários maranhenses para a produção e comercialização de carvão vegetal e de ferro gusa e que em 1986 foi acolhida pelo Programa Grande Carajás, no final dos anos 80 e começo dos anos 90 adquiriu e registrou ou não registrou em cartório terras de Anapurus, São Bernardo, Urbano Santos, Brejo e Santa Quitéria totalizando mais de 70.000 hectares. Em Santa Quitéria, foram 9.908 hectares adquiridos e registrados em cartórios, mais 9.780 hectares adquiridos e não registrados em cartórios e 4.894 hectares adquiridos e registrados, mas que tudo leva a crer seriam posse de terra, quer dizer nelas agricultores familiares moravam havia décadas, mas como alfineta Joaquim Shiraishi Neto, mestre em Planejamento pelo Núcleo de Altos estudos Amazônicos da UFPA, “a situação descrita,…, é fato corriqueiro e extremamente irrelevante para as autoridades do Estado do Maranhão. Imensas quantidades de terra foram e são vendidas pelo Instituto de Terra em favor de algum grupo econômico, a pretexto do desenvolvimento do estado, e à revelia dos seus próprios ocupantes que há gerações moram, cultivam e trabalham a área” – Carajás: Desenvolvimento ou destruição? – publicado pelo Fórum Carajás em 1995.
Contudo, os conflitos dos agricultores familiares e agroextrativistas do Baixo Parnaíba maranhense se dariam com a Marflora, instituída pela Margusa em 1993 para executar seus programas de manejo florestal sustentado e conquistar forçadamente mais hectares de terra para estes programas, valendo-se de figuras como Tonico Garreto que avançou sobre áreas do povoado de Cajazeiras e repassou-as para o grupo empresarial.
Os ativos e os passivos da Marflora, posteriormente, seriam absorvidos pela Comercial Agrícola Paineiras, subsidiária do grupo Suzano e a Margusa, a empresa principal do grupo, depois de fechar as portas, ressuscitou no ano de 2003 quando o grupo Gerdau assumiu 2,5 milhões de dólares em dívidas e injetou 15,5 milhões de dólares que expandiriam a produção do parque industrial para 200 mil t/ano de ferro gusa – arregalem os olhos, pois a Paineiras arrendou mais de setenta mil hectares, onde pesquisava o desenvolvimento do eucalipto na transição Cerrado-Semi-árido, para o ambicioso projeto de carvão vegetal da Gerdau em oito municípios do Baixo Parnaíba, pelo qual se reflorestaria 42 mil hectares com eucalipto.
As atividades ilícitas da Margusa no Baixo Parnaíba na década de 90 minaram quaisquer possibilidades de que a Gerdau encaixe um processo produtivo de ferro gusa sem que as comunidades agro-extrativistas, as ONG’s, as entidades representativas dos trabalhadores rurais e movimentos sociais o contestem e isso ocorrerá mesmo que a Gerdau patrocine grupos políticos e indivíduos isolados para encampar a idéia de que o eucalipto trará vantagens a todos do Baixo Parnaíba.
Mayron Régis
junho de 2007
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