sexta-feira, 23 de outubro de 2020

A rua

Os registros históricos sobre a Rua Grande datam da segunda metade do século XVII, quando a Câmara de São Luís deliberou a construção de um caminho que ligaria a cidade até o Cutim – nas proximidades do atual bairro do Anil. Tal empreendimento serviria para facilitar o fluxo de viajantes entre o pequeno núcleo urbano e o interior da ilha e do Maranhão. Neste tempo a via ficou conhecida como Estrada Real e, posteriormente, como Caminho Grande. Seu calçamento ficou pronto somente na gestão de Eduardo Olímpio Machado como descreve Carlos de Lima em seu Caminhos de São Luís. Entretanto o logradouro passaria por várias outras obras de pavimentação em governos posteriores. A partir da segunda metade do Oitocentos e boa parte do século XX, a Rua Grande se caracterizou pelos ares de modernidade, comum na São Luís daquele período, com a presença das linhas do bonde, do calçamento de cimento, de lojas e comércios, além da efervescência cultural e de comportamentos, com enorme fluxo de pessoas. Josué Montello, em seu Os Tambores de São Luís, narra o ambiente deste período “(...) principiava a Rua Grande, com suas casas de modas, os seus bazares, a sua farmácia homeopática, o seu barbeiro sangrador. (...) Havia ainda um professor de dança, um afinador de pianos, dois armadores de galas e funerais, várias lojas de fazendas, um armazém de vinhos e uma chapelaria, além de um ateliê fotográfico muito bem aparelhado para tirar retratos pelo novíssimo sistema de ambrótipo, sobre cristal, malacacheta e encerado”. Domingos Vieira Filho escreveu na sua obra Breve História das Ruas e Praças de São Luís que “por ela desfilam as beldades sanluizenses exibindo suas custosas toiletes e sua graça inconfundível”. No início dos anos 1920, os casarões da Rua Grande sofreram sensíveis alterações, isto por que uma lei municipal determinou a colocação de platibandas nas edificações, danificando seriamente o padrão arquitetônico colonial. Na Rua Grande que nasceram duas das mais conhecidas figuras da cultura literária maranhense e brasileira: Manuel Odorico Mendes e Catulo da Paixão Cearense. O primeiro nasceu no pequeno sobrado de nº 133 onde funcionou as Lojas Pernambucanas, junto ao antigo Beco de Teatro, hoje Rua Godofredo Viana. Odorico Mendes veio ao mundo em 24 de janeiro de 1799 e tornou-se um dos mais respeitados intelectuais brasileiros de sua época. Já Catulo da Paixão Cearense nasceu e viveu toda infância num sobrado azulejado de nº 66 da Rua Grande. Na casa há uma placa de mármore inaugurada em 1940 em sua homenagem e traz a seguinte inscrição: “nesta casa nasceu, a 8.10.1863, Catulo da Paixão Cearense, o grande poeta que soube interpretar, em versos bem representativos da inteligência maranhense a alma popular brasileira”. Ficou imortalizado na história da música brasileira com a canção Luar do Sertão. Em um casarão de canto, situado no cruzamento da Rua Grande com a Rua Godofredo Viana está assentada a antiga residência de Ana Jansen. O sobrado é de arquitetura colonial e composto por azulejos portugueses azuis e brancos de cima a baixo. Ela dominou a cena política maranhense por várias décadas do século XIX, sendo respeitada e temida por muitos. Ana Jansen monopolizou o mercado de água potável em São Luís por anos, já que possuía sítios com fontes no Vinhas e no Apicum, dos quais extraía água para ser vendida nas residências por meio de seus escravos em carroças. Ficou impregnada no imaginário popular através da lenda que conta que nas noites de lua cheia vaga pelas ruas do centro da cidade com sua carruagem puxada por dois cavalos decapitados que expelem fogo e um coche escravo também sem cabeça, emitindo sons de martírios de escravos. À Rua Grande também pertenceu uma das mais tradicionais paróquias da cidade: a Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Mulatos. Datada do ano de 1762, transformou-se em Sede Paroquial apenas em 1805. Na terceira década do século passado houve uma tentativa de reorganização espacial na cidade. Muitos prédios antigos foram demolidos em nome de uma “modernização”. Pedro Neiva, o então prefeito de São Luís e o Interventor Federal no Maranhão na época, Paulo Ramos, decidiram demolir a igreja, que atualmente abriga o edifício Caiçara. Nos seus tempos áureos, a Rua Grande abrigou casas comerciais e de entretenimento. De armarinhos às lojas de tecidos, de farmácias à bazares, de sorveterias à restaurantes, de clubes à cinemas. Estes locais funcionavam como espaços de sociabilidade, pois a Rua Grande, apesar de extensa e diversa, possibilitava os encontros, a troca de experiências, as conversas sobre os acontecimentos cotidianos da cidade. Era um palco que concentrava atores diversificados, de madames da alta sociedade à descendentes de escravos. Constituiu-se num “centro polarizador”, que tudo atraía. O cinema Éden e o Casino Maranhense eram desses espaços de encontro que se localizaram no logradouro. O cine Éden funcionava no prédio onde hoje corresponde à Loja Marisa. Inaugurado em abril de 1919 funcionava também como teatro e era considerado por muitos como o mais importante de sua época. O cine Éden exibiu filmes e peças diversas, além de acolher, no período de momesco, pessoas da cidade para as matinês carnavalescas, sempre animadas por orquestras que ocupavam o seu salão principal. O Casino Maranhense localizava-se no casarão que pertenceu a Ana Jansen. No térreo do sobrado funcionava o Bazar Valentim Maia e no andar de cima havia o bar e o salão, que na época do carnaval eram realizados os bailes à fantasia, que à época mobilizavam pessoas de classes média e alta da sociedade. Os comércios eram um atrativo a mais no logradouro. A exemplo da Casa Ponto Chic, importante bar e restaurante, que concentrava integrantes de tradicionais famílias ludovicenses ou ainda a Mercearia Neves (prédio da atual Lojas Americanas) que vendia bebidas e produtos alimentícios de primeira qualidade. Outros estabelecimentos comerciais também se destacavam: a famosa Farmácia Garrido, a antológica Magazine 4.400, a gigante A Exposição, a tradicional Mercearia Luzitana, o ainda existente Armazém Paraíba e tantos outros que fizeram da Rua Grande o logradouro mais importante de São Luís. A Rua Grande é atualmente um local de passagem de milhares de pessoas oriundas de diferentes partes da cidade, embora tenha perdido frequentadores nos últimos anos para os shopping centers, seu comércio popular ainda ferve, camelôs e vendedores ambulantes gritam a todo instante, as lojas presentes nos casarões vendem de tudo, roupas, eletrodomésticos, eletrônicos, calçados, comida, produtos de beleza, remédios, enfim, um emaranhado de opções para consumidores sedentos. Só quando acaba o dia, na paisagem soturna, no silêncio, ecoam as seculares vozes do interior dos velhos casarões e dos paralelepípedos, testemunhos “vivos” de um importante capítulo da História ludovicense. Luis Eduardo Neves, historiador

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