sexta-feira, 30 de abril de 2021

Tanque da Rodagem, um lugar privilegiado

Sempre teve plena consciência que a melhor forma de conhecer uma família e sua casa passa pela cozinha: as panelas, o fogão, os temperos, os pratos, os talheres, a geladeira e o que mais couber. A cozinha se constitui no centro de uma casa e por ela trafegam os integrantes da família o dia inteiro. De todos os integrantes da família, uma detem os conhecimentos primordiais para preparar a comida. Esse conhecimento perpassa a vida familiar por décadas. Nenhuma outra forma de conhecimento circula tanto em uma casa como a preparação de uma comida como também nenhuma outra forma de conhecimento é armazenada em tamanha quantidade que dura um mês. Quem se responsabiliza por uma casa sabe o quanto tem na despensa, para que serve e quanto tempo dura. A imagem de uma bisavó que guardava os mantimentos num baú e mantinha a chave sob vigilância cerrada de seus olhos representava bem o quanto o trato continuo com as coisas da casa (terra) endurecia a pessoa. A cozinha não vive sem uma boa despensa e uma boa despensa não vive absolutamente de produtos industrializados, pois para cozinhar e para se alimentar bem um bom requisito é dispor de produtos naturais ao alcance da mão. Manusear produtos naturais requer uma experiência e uma destreza que não é para qualquer um. A avó acordava de madrugada e por horas e horas a fio amassava a massa da tapioca sobre uma mesa da cozinha. A avó não dava moleza para a massa da tapioca e a tapioca não dava moleza para a avó. Depois de muito amassar, a avó decidia se a massa estava pronta para assar no fogão e virar bolo frito (cada bolo frito da hora). Fora a avó e uma tia, ninguém mais da família guardou esse conhecimento que se perdeu porque as duas faleceram. Quem nasceu na família pos morte das duas não pôde provar os bolos fritos que ambas passavam horas a fabricar. A cozinha não é um espaço privilegiado somente em função da comida. Ela também é um espaço privilegiado por abrigar o preparo de garrafadas. A geladeira da casa de Nazaré, agente de saúde do município de Matões, militante quilombola e moradora do quilombo Tanque, fica numa zona de transição entre a sala e a cozinha. Nazaré coordenava a casa de maneira geral, o seu Pretinho, marido de Nazaré, coordenava o setor de criações no quintal e a mãe de Nazaré coordenava a cozinha. A cozinha se configurava um espaço onde cabia, no máximo, duas pessoas e nesse espaço a mãe de Nazaré cozinhou um pato para os seus familiares e umas visitas jantarem. Sinta-se privilegiado quem come um pato porque pra carne amolecer leva tempo. O privilegio de participar das relações familiares na casa de Nazaré inclui provar uma garrafada cujo componente principal é um mato chamado de “quarenta galhadas” que seu Pretinho trouxe da região do Assoviante, comunidade quilombola do município de Caxias. Aqueles que apresentam problemas gástricos devem tomar. Logo após o jantar, uma das visitas abriu a geladeira querendo beber água. O ambiente, um pouco escurecido, dificultava a visão dos litros e ao pegar um deles a mãe de Nazaré o alarmou: “Não é água. É a garrafada das “quarenta galhadas”. Havia dado um gole numa outra vez. Amargava. Devolveu o litro para a geladeira e pegou o litro de água verdadeiro.

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