Grandes incêndios são frequentes no Cerrado – principalmente nos
meses de inverno, quando os ventos fortes, a falta de chuva, a baixa
umidade do ar e a massa vegetal seca favorecem a propagação das chamas.
Pode parecer contraditório, mas muitos especialistas defendem que a
melhor forma de prevenir o problema e proteger a biodiversidade desse
bioma tão ameaçado é, justamente, o uso controlado do fogo.
“Queimadas controladas não só diminuem o risco de incêndios
acidentais como trazem benefícios para a vegetação. Dois terços das
espécies do Cerrado, que constituem o estrato herbáceo, são adaptados a
queimadas frequentes e muitas delas podem desaparecer se o fogo for
totalmente evitado”, alertou Vânia Regina Pivello, professora do
Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), durante o
quarto evento do Ciclo de Conferências 2013 do BIOTA Educação,
organizado pelo Programa BIOTA-FAPESP no dia 16 de maio.
No solo ácido e pobre em nutrientes do Cerrado, explicou Pivello, a
vegetação tende a acumular nas folhas grande quantidade de lignina,
substância estrutural de difícil decomposição. O fogo tem o papel de
acelerar o processo de reciclagem dos nutrientes, permitindo que sejam
reaproveitados mais rapidamente pelas espécies rasteiras. Além disso, o
choque térmico provocado pelo fogo quebra a dormência vegetativa das
sementes, causando fissuras que favorecem a penetração da água e
estimulam a germinação.
Graças a alguns milhões de anos de evolução sob a influência do fogo,
afirmou a professora, a vegetação do Cerrado, especialmente a herbácea,
apresenta rápido poder de recuperação após um incêndio. Rebrota em
curto período, atraindo diversos herbívoros em busca de forragem nova.
Mesmo as árvores – para as quais o fogo geralmente não traz benefícios –
desenvolveram defesas adaptativas, como as grossas cortiças que
recobrem o tronco e funcionam como isolante térmico.
“Há regiões do Cerrado onde predominam as espécies herbáceas,
especialmente os capins. Há outras em que a maior parte da vegetação é
arbórea. Há ainda lugares em que existe um equilíbrio entre essas duas
formações. É preciso preservar todas essas fisionomias. Mas, como o fogo
tende a favorecer o estrato herbáceo e a prejudicar muitas das árvores,
a frequência ideal de queimadas varia de acordo com cada situação
específica”, explicou Pivello.
Além de manter a biodiversidade, o manejo de fogo tem o objetivo de
diminuir a quantidade de matéria orgânica acumulada, que funciona como
combustível no caso de incêndios provocados por raios ou práticas
agropecuárias.
Segundo a professora, a queimada pode ser feita em uma época menos
seca, como abril ou maio, e durante a noite, quando a umidade do ar é
maior. “Se a gente não se antecipar ao fogo acidental, grandes incêndios
vão acontecer a cada três ou quatro anos na maior parte das reservas
que visam a proteger o Cerrado. Inevitavelmente, o Cerrado vai queimar, e
vai ser num momento em que ninguém está controlando”, afirmou.
Como exemplo, Pivello cita o grande incêndio que atingiu 90% do
Parque Nacional das Emas (GO) em 2010. Em casos como esse, afirmou, a
fauna é a grande prejudicada, pois fica sem refúgios.
O manejo de fogo, no entanto, foi durante muito tempo proibido no
Brasil. Uma lei de 1989 autorizou a prática, mas, segundo Pivello, ainda
hoje é difícil obter licença dos órgãos ambientais. Além da falta de
conhecimento sobre a importância do fogo para o Cerrado, a professora
aponta como motivo a falta de estrutura para fazer o manejo de forma
adequada.
“Há sempre o risco de o fogo sair do controle e atingir a fazenda
vizinha, o que seria um grande problema. Por isso é preciso ter uma
brigada de incêndio bem treinada e equipada. Mas as unidades de
conservação, tanto federais como estaduais, têm grande carência de
recursos humanos e materiais”, afirmou.
A professora também ressalta a necessidade de estudos que permitam
elaborar um plano de manejo adequado para cada região do Cerrado. “Isso
depende de experimentação. Temos aproveitado as queimadas acidentais
para tirar conclusões, mas o ideal seria ter projetos para testar
programas de queimadas controladas. Caso contrário, nunca vamos ter
certeza de que tipo de manejo é mais adequado a cada local”, disse.
Tesouro perdido
A falta de manejo de fogo adequado não é, no entanto, a única ameaça à
biodiversidade do Cerrado, que originalmente cobria 22% do território
brasileiro. Graças principalmente ao cultivo de soja, mas também à
pecuária, à extração de madeira para produção de carvão para siderurgia,
à industrialização e à urbanização, mais de 55% do bioma já foi
desmatado ou descaracterizado.
“O Cerrado é um dos 25 ecossistemas do planeta com alto risco de
extinção”, ressaltou Vanderlan Bolzani, professora titular do Instituto
de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp), ao apresentar a
palestra “Beleza & Inspiração do Universo Micromolecular da
biodiversidade do Cerrado”, que integrou a programação do quarto evento
do Ciclo de Conferências 2013.
“Essa área desperta grande interesse do agronegócio. A produção de
oleaginosas vem crescendo exponencialmente no Cerrado e isso é um
problema, pois estamos tirando toda a vegetação que pode nos trazer
valor. O país poderia ganhar divisas econômicas com a descoberta de
produtos naturais com propriedades farmacológicas de interesse”, avaliou
Bolzani.
Durante sua apresentação, a professora da Unesp deu exemplo de
medicamentos produzidos por empresas nacionais e internacionais com base
na investigação científica das plantas do Cerrado. Também apresentou o
trabalho desenvolvido na NuBBE Database, uma base de dados sobre
produtos naturais isolados a partir da biodiversidade do Brasil que já
reúne informações sobre 640 compostos de origem natural estudados nos
últimos 15 anos.
A iniciativa, desenvolvida no âmbito do Programa BIOTA-FAPESP, nasceu
da cooperação entre o Núcleo de Bioensaios, Biossíntese e Ecofisiologia
de Produtos Naturais (NuBBE), da Universidade Estadual Paulista
(Unesp), e o Laboratório de Química Medicinal e Computacional (LQMC), do
Instituto de Física de São Carlos, da Universidade de São Paulo (USP).
Próximas edições
Organizado pelo Programa BIOTA-FAPESP, o Ciclo de Conferências 2013
BIOTA Educação tem o objetivo de contribuir para o aperfeiçoamento do
ensino de ciência. A quinta etapa será no dia 20 de junho, quando o tema
será “Bioma Caatinga”. Seguem-se conferências sobre os biomas Mata
Atlântica (22 de agosto), Amazônia (19 de setembro), Ambientes Marinhos e
Costeiros (24 de outubro) e Biodiversidade em Ambientes Antrópicos –
Urbanos e Rurais (21 de novembro).
Por: Karina Toledo, da Agência FAPESP
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