Tornamo-nos um pouco aquilo que ouvimos ou que lemos. O assunto da
conversa não poderia ficar para depois e nem para o outro dia: um iria
embora à mesma noite e o outro no dia seguinte. Havia falta de luz,
coisa normal à noite. Restava acender uma vela que espantasse um pouco a
escuridão. Dessa precária iluminação surgiriam sombras e, estas,
sombras de tantas iras e de tantas façanhas, se decomporiam em palavras
quase mortas, deixadas pelo mato.
Luís Alves Ferreira, médico
patologista, professor de patologia da UFMA e do mestrado de Saúde e
Meio Ambiente, socorre as palavras e as ajunta a reviver durante uma
breve conversa sobre o Baixo Parnaíba e suas populações. O Cerrado é a
coluna cervical de todos os outros biomas do Brasil, nas palavras de
Luís Alves. Em vários trechos do Baixo Parnaíba maranhense, Cerrado e
Semi-Árido e Mata dos Cocais lavam as mãos e os pés juntos nos rios que
formam as bacias do rio Parnaíba e do rio Preguiça e que, com suas
águas, abastecem as cidades do Baixo Parnaíba. Chegando a qualquer uma
destas cidades, quase que, de imediato, presume-se que a água é
abundante. Entre Brejo e São Bernardo se formam muitas lagoas. Tem a
lagoa do Escalvado, onde se concretizou um projeto de assentamento; tem a
lagoa Pouca Vergonha; e tem a lagoa Bom Princípio. O rio Buriti, que
percorre boa parte do Baixo Parnaíba, desemboca na lagoa do Bacuri e
esta se emborca na lagoa de Santo Agostinho, município de Magalhães de
Almeida. Sim, a água vinda da chapada empapa todo o Baixo Parnaíba,
sendo este um imenso vale cheio de altos e baixos que regula o amarrar e
desamarrar das águas para os rios secundários e para os principais rios
da região. Nesse amarrar e desamarrar das águas, as lagoas, então, se
formam como um ambiente prenhe de e que carreia a vida, da mesma forma
que um brejo, daí que a principal cidade do Baixo Parnaíba seja
designada Brejo.
Em todo caso, mesmo com a “abundância” de água
entusiasmando, logo vem à mente que o Baixo Parnaíba, por apresentar
faixas de semi-árido, é uma das regiões do Brasil favorecidas pelo
“Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o
Semi-Árido : Um Milhão de Cisternas Rurais”, que é uma parceria da
Articulação Semi-Árido (ASA) com o governo federal, empresas e bancos, e
pelo Fome Zero. Verifica-se para a população do Baixo Parnaíba uma
situação de “stress hídrico”, na qual várias comunidades sofrem pela
escassez e pela qualidade da água e pelo excesso de calor, e uma piora
absoluta no que tange os aspectos sociais. Portanto, fez-se e ainda se
faz urgente, como no caso do programa das cisternas, a criação de novas
formas de convivência das populações com a natureza que suavizem a
situação de stress hídrico e de absoluto fracasso das políticas públicas
por que passam e que não desgastem os recursos naturais ainda mais.
Parecia
simples viver. O Baixo Parnaíba entre duas grandes bacias (a do rio
Preguiça e a do rio Parnaíba) e cortado por rios, riachos e lagoas.
Contudo, as populações estão à mercê de uma grave crise hídrica e Luís
Alves discorre sobre isso como poucos fariam. “As políticas públicas
para a região são péssimas”. Que políticas públicas são essas e como
elas atuam na vida econômica, social e ambiental? Em geral, as políticas
públicas referidas pelo Luís são pensadas não pela ótica dos
prejudicados pela ordem social, mas sim na forma de incentivos fiscais
que atraiam projetos agro-exportadores.
Praticamente, por todas
as décadas de 80 e 90 se viu empresas ganhando áreas do Baixo Parnaíba
para o plantio de eucalipto, este monocultivo em polvorosa por conta do
negócio da celulose, bambu e cana-de-açúcar e para a queima de madeira
em carvoarias, que atendiam as empresas de ferro-gusa, obtendo apoio da
extinta Sudene e do BNDES: Itapagé Celulose, Comercial e Agrícola
Paineiras e a Marflora.
Exatamente, em 1980, o então governador
do Maranhão João Castelo assina o decreto 4.154 que se arrogava proteção
dos babaçuais “excetuando os casos de implantação de projetos de
desenvolvimento agrícola.” Essa decisão teve efeito imediato sobre a
mata dos cocais que é uma zona de transição entre a floresta amazônica e
o Cerrado e a floresta amazônica e a Caatinga. O decreto 4.154 , assim
como os decretos 5.549 e 5.550 de março de 1975, estes facilitando o
desmatamento de 65.000 hectares de babaçuais na região de Caxias, em vez
de defender os babaçuais fez preponderar os interesses da indústria de
celulose e da cana-de-açúcar sobre o Baixo Parnaíba e adjacências.
Questionável, então, a expressão “políticas públicas”, pois as agências
de desenvolvimento como a SUDENE e bancos de financiamento como BNDES
financiavam projetos ou indicavam projetos para receberem financiamentos
que desciam de pára-quedas sem nenhuma discussão prévia envolvendo
sociedade, estado e empresa. Pelo contrário; havia uma cumplicidade em
que estrutura de Estado limpava o caminho e fazia de conta que estava
tudo certo e os grupos empresariais se alojavam como lhes aprouvesse.
Nenhuma indagação partiu do governo e do judiciário do Maranhão, na
década de 90, para a Marflora/Margusa a respeito das terras que esta
empresa lavrou em seu nome.
Aproveitaram, e muito, de que o Baixo
Parnaíba sempre seguiu invisível, sem que o restante do estado do
Maranhão desse a mínima para o que lá desenrolava. Constata-se uma
redução de 3,7% anual nas áreas que produziam arroz, milho, feijão e
mandioca e de 2,8% na produção em todo o estado do Maranhão, atingindo,
em cheio, a segurança alimentar das populações. No caso do Baixo
Parnaíba, essa redução deve ser maior por se tratar de uma área recente
de expansão de soja. Esta expansão resulta de políticas públicas pouco
propensas à discussão entre os vários segmentos da sociedade. A Embrapa
festejou e espalhou em seminário que o Baixo Parnaíba se firmaria como a
melhor área para o plantio de soja. Luís Alves bate em cima desse
argumento: “A região do ponto de vista técnico-científico não é propícia
para o plantio de soja. Deve-se esperar pelo pior com a diminuição na
quantidade da água e a região virando um deserto”.
Mayron Régis 2005
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