Pesquisador da Universidade de Goiás alerta que a
devastação sem controle do Cerrado pode afetar o clima, os rios e a
biodiversidade
O governo brasileiro se orgulha nacional e internacionalmente de ter
reduzido o desmatamento no Brasil. Apresentou um plano de metas para a
conferência do clima de Paris (COP 21) no fim de novembro, que inclui
redução nas emissões de gases que aquecem o planeta apostando em mais
queda no desmatamento. Só que as vitórias passadas e as promessas
futuras consideram apenas a
Amazônia. O
Cerrado,
outro importante bioma brasileiro, ficou de fora. O problema é que o
cerrado, que vem sendo devorado pela expansão sem cuidados da
agricultura, tem grande importância para o país. Além de abrigar uma
riqueza biológica única, é responsável pelas nascentes que alimentam 8
das 12 bacias hidrográficas do Brasil. Destruir o Cerrado é secar o
Brasil. E matar as bases que garantem o equilíbrio ecológico para a
própria agricultura. É o que explica Rafael Loyola, diretor do
Laboratório de Biogeografia da Conservação, da Universidade Federal de
Goiás.
ÉPOCA: Se você tivesse que explicar o que é o Cerrado e qual sua importância para um brasileiro desinformado, o que diria?
Rafael Loyola: O Cerrado é um conjunto de tipos de vegetação nativa do
Brasil e extremamente rico em espécies de plantas e animais. Essa
vegetação varia da florestas até campos limpos ou com rochas em grandes
altitudes. Ele tem uma biodiversidade incrível, que vai desde bactérias
em cavernas até plantas e animais. Além disso, ele é importantíssimo
para a manutenção da água no Brasil, já que as nascentes e rios do
Cerrado contribuem com 8 das 10 regiões hidrográficas que temos no
Brasil.
ÉPOCA: Você diria que o Cerrado está ameaçado?
Loyola: Sim. Infelizmente, o Cerrado é o bioma mais ameaçado do Brasil
hoje em dia. Isso se deve a uma combinação de pouca proteção (apenas 11%
do Cerrado é coberto por reservas ou unidades de conservação,
comparados com quase 50% da Amazônia) e uma alta vocação agrícola, com
terrenos planos e de fácil irrigação. Isso atraiu a agricultura em
grande escala e a pecuária, de maneira que milhares de hectares são
desatados por ano para plantio ou criação de pastagens.
>> O meio ambiente ficou fora do plano federal de agricultura para o Cerrado
ÉPOCA: Os últimos dados disponíveis indicam que a área (em
hectares) desmatada por ano no Cerrado é duas vezes maior do que na
Amazônia. Por que não há uma mobilização para combater esse desmatamento
do Cerrado?
Loyola: O governo federal possui um sistema de monitoramento por
satélite bastante desenvolvido para a Amazônia, que vem sendo replicado
para o Cerrado em menor escala.
Por muito tempo a Amazônia teve mais atenção e agora o Cerrado precisa de atenção.
Mas esbarramos com toda uma política de desenvolvimento agrícola para a
região. Isso, na minha opinião é o maior desafio para a conservação do
Cerrado -
conter o desmatamento ilegal e conciliar atividades agrosilvopastoris com a conservação das águas e da biodiversidade no bioma.
ÉPOCA: O governo brasileiro vem afirmando nos últimos anos que o
Brasil está vencendo a guerra contra o desmatamento usando os números
da Amazônia. É correto dizer que o ritmo de desmatamento no Brasil está
caindo sem considerar o Cerrado?
Loyola: O governo se concentra na Amazônia porque tem dados muito
melhores para lá, E é correto dizer que o desmatamento na Amazônia
reduziu bastante, embora venha aumentando no últimos 3 anos.
Mas toda essa governança na Amazônia favoreceu um processo de "vazamento" da ilegalidade para o Cerrado,
onde a legislação é mais branda em termos do que pode ser desmatado. No
Cerrado, especificamente, o desmatamento vem crescendo muito. Parte
desse desmatamento é legal e previsto pelo novo código florestal (que
permite mais desmatamento que antes), parte é ilegal e desmata mais que o
permitido, justamente porque não há tanto controle.
ÉPOCA: O Brasil se propõe a reduzir emissões de carbono com a
queda no desmatamento da Amazônia. Essa queda não seria em parte
compensada pelas emissões do desmatamento no Cerrado?
Loyola: Seria sim. Ao traçar uma política de adaptação á mudança do
clima e delinear metas para a redução de emissões é preciso considerar
todos os biomas brasileiros, em especial o Cerrado e a Amazônia.
ÉPOCA: Você acha que o monitoramento de desmatamento do Cerrado hoje é adequado?
Loyola: Não. O governo federal tem um programa de monitoramento do
desmatamento chamado PPCerrado (Plano de Ação para Prevenção e Controle
do Desmatamento e das Queimadas no Cerrado), que vem sendo aplicado, mas
com menos eficiência que o da amazônia. Além disso, há um problema de
disponibilidade de dados. Os dados do governo são sempre atrasados em
relação à dinâmica atual. Por exemplo, se você quiser os dados
disponíveis e mais atuais do PPCerrado, eles são de 2011.
>> O desmatamento no Cerrado é maior do que na Amazônia
ÉPOCA: O Brasil montou um sistema exemplar de monitoramento do
desmatamento da Amazônia, com satélites que geram imagens diárias,
programas de computador e equipes para analisar. É possível acompanhar o
ritmo de devastação mês a mês. Por que não se faz isso para o Cerrado?
Loyola: Ele faz isso, no âmbito do PPCerrado. Na minha opinião os
resultados desse monitoramento só não ganham muito destaque pela pressão
de outros setores, especialmente agricultura e pecuária, que vêm o
Cerrado como a maior fonte de agronegócio do país.
ÉPOCA: O público em geral tem uma ideia de que o Cerrado é
basicamente uma formação de gramíneas com árvores esparças baixas e
retorcidas. O Cerrado tem floresta?
Loyola: Tem sim. O Cerrado talvez seja o bioma com maior tipo de
formações vegetais do Brasil. Há florestas ao redor de rios (que se
parecem florestas da mata atlântica), há florestas em vales entre
montanhas e há inúmeras outras formações, desde campos com gramínea (que
são nativos e não plantados para o gado) até campos cheios de pedras,
com belezas únicas.
>> O drama das florestas invisíveis do Brasil
ÉPOCA: Qual é a importância biológica do Cerrado?
Loyola: O Cerrado é uma savana tropical, como as da África. A diferença
é que não temos bichos grandes. Todos acham que a savana africana é
importante, mas se esquecem do Cerrado. Aqui no Brasil, o Cerrado é tão
rico em biodiversidade quanto a Amazônia ou a Mata Atlântica. Basta ver
alguns números: ele possui mais de 12.000 espécies de plantas (44%
exclusivas do bioma), abriga 30% da flora ameaçada do Brasil, é o lar de
metade das aves do Brasil, metade dos répteis do Brasil (180 espécies,
17% exclusivas) e tem mais de mais de 200 espécies de mamíferos (10%
exclusivos). É muita diversidade para uma área que já ocupou 22% do
Brasil e, segundo dados oficiais, já perdeu mais de 50% da sua área.
>> O berçário de peixes do Cerrado
ÉPOCA: Como você explicaria a importância das áreas de Cerrado para os mananciais que alimentam os rios brasileiros?
Loyola: O Cerrado contribui para a vazão de 8 das 12 bacias
hidrográficas do Brasil, alimentando grandes rios como o São Francisco,
Amazonas, Paranaíba e Araguaia. Além disso, ele mantém grandes aquíferos
(especialmente o bambuí e guarani, que alimenta a bacia do paraná,
maior parte dos rios de São Paulo e Goiás. Infelizmente, esses aquíferos
têm cada vez
menos água e cerca de 10 pequenos rios desaparecem a cada ano no cerrado.
ÉPOCA: O Cerrado do Centro-Oeste cedeu a expansão da soja, da
cana e da pecuária. Agora a nova fronteira de expansão agrícola do país é
a região de Cerrado de partes do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia,
chamada Matopiba. Qual é o impacto ambiental dessa expansão?
Loyola: A região de Matopiba vem sendo intensamente explorada para
esses cultivos, mas com um ritmo de desmatamento assustador. Até 2010,
por exemplo, mais de 60% de todo o Cerrado que ocorre na Bahia já havia
desaparecido. A esse ritmo, em poucos anos esse estado, por exemplo, não
terá mais Cerrado nativo, ficando apenas com a Mata Atlântica. Essa
expansão rápida e intensa, além disso, muda todo o regime hídrico e
climático da região, com impacto profundo não só sobre a natureza, mas
sobre a vida das pessoas, especialmente as mais pobres, que moram em
áreas de risco de seca, queimadas, e falta d'água.
ÉPOCA: É possível conciliar a conservação do Cerrado com a
agricultura brasileira? A impressão comum é que temos uma escolha: ou
preservamos o Cerrado por alguma razão estética e espiritual ou
plantamos comida para alimentar os brasileiros e exportar. Existe mesmo
essa escolha?
Loyola: Essa escolha é um absurdo e um contra-senso. Sem natureza, sem
biodiversidade, sem Cerrado nativo, não há agricultura. Não há
agricultura sem o solo do Cerrado, sem a chuva e as águas da região, sem
os polinizadores e os inimigos naturais das pragas. Ou seja, trocar o
Cerrado por cultivos é um péssimo negócio que pode render a curto prazo,
mas que não se sustenta. É típico de uma política de fronteira que
exaure os recursos naturais e não permanece, trazendo mais pobreza e
redução do bem-estar das populações mais pobres e necessitadas. É
possível conciliar a proteção com a produção, pensando em uma
agricultura com menos insumos, menos baseada em queimada e plantio e que
aposta mais na melhoria da produção, que na expansão da área. Por
exemplo, se a pecuária brasileira aumentasse sua produtividade de 1
cabeça de gado por hectare, para 1,5 cabeça por hectare, todas as metas
do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) seriam
atendidas, sem necessidade de novos desmatamentos.
ÉPOCA: Existe algum bom exemplo de política ou ação para a
conservação do Cerrado que não fere a economia e o progresso de uma
região?
Loyola: Há inúmeros projetos de ONGs da sociedade civil que trabalham
com pequenos produtores e visam uma produção mais sustentável.
A Aliança da Terra é um ótimo exemplo, na minha opinião.
Além disso, nós do Laboratório de Biogeografia da Conservação trabalhos
em conjunto com o Centro Nacional para a Conservação da Flora
(CNCFlora), vinculado ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro, elaborando
planos de ação nacionais (chamamos de PANs) para a conservação da flora
do Cerrado. Nesses PANs, sempre envolvemos atores relacionados a
agropecuária, mineração, hidroelétricas, assim como especialistas
botânicos, gestores de parques, agentes do governo e ONGs para atacar o
problema da conservação sustentável da forma mais colaborativa possível.
Esse ano vamos publicar dois desses PANs: o PAN do Espinhaço
Meridional, em Minas Gerias e o PAN da região de Grão Mogol e Francisco
Sá, também em MG. Na semana passada não te respondi porque estava
realizando, com o CNCFlora a oficina do PAN da bacia do Alto Tocantins.
Esses PANs vão ajudar a salva mais de 400 espécies ameaçadas de plantas,
sem ferir a economia ou o progresso dessas regiões.