São sete da manhã no Cerro Poty, uma comunidade indígena da etnia avá guarani, situada ao lado do aterro de Assunção,
no Paraguai. O sol, já no alto do céu, reflete-se no solo ainda encharcado desde a última enchente. No sopé da colina Lambaré cresce a vegetação exuberante impulsionada pelo calor e a umidade do clima. Ali, dezenas de famílias indígenas expulsas de suas terras sobrevivem há anos. “A vida aqui é dura, porque não há trabalho. Não há apoio do governo”, diz Petrona Ruiz. “Alguns reciclam lixo no centro ou vendem artesanato”. Petrona tem 38 anos e cinco filhos e foi eleita líder da comunidade, há dois anos.
Vive aqui há 14, desde que chegou de Curuguaty, uma cidade rural no interior do país.
Cerro Poty não é um caso isolado. “No Paraguai existem 112 000 indígenas”, diz Claudelina González, chefe de comunicação do Instituto Paraguaio do Indígena, INDI, e 75% deles vivem em situação de extrema pobreza, de acordo com a própria instituição.
Expulsos de suas terras
“Em 2002, a maior parte da população indígena do Paraguai estava na região ocidental do país, uma vasta região árida conhecida como Chaco, mas agora estão na fértil região leste”, assegura Claudelina. “A monocultura e a pecuária fazem com que os indígenas sejam expulsos de suas terras, e as pessoas pobres acabam procurando acesso aos serviços básicos em outros lugares”, diz.
Na comunidade de Cerro Poty vivem atualmente 43 famílias indígenas. “Conheço muitas pessoas na minha aldeia que foram desalojadas e tiveram que emigrar para a cidade”, assegura Petrona na porta de sua humilde casa de tijolos. Estas migrações forçadas costumam ser provocadas pela fome, pela falta de serviços ou pelas expulsões para a expansão das fazendas de gado ou a plantação de soja. Metade das terras utilizadas para este cultivo pertenciam a famílias camponesas ou indígenas, de acordo com um relatório da Oxfam America.
O antropólogo paraguaio René Alfonso afirma categoricamente: “O desmatamento e a expansão da monocultura de soja estão levando à desaparição dos povos. Estamos enfrentando um etnocídio dos povos indígenas.”.
O caso da Comunidade de Cerro Poty não é um fato isolado. Em 22 de outubro o promotor Santiago Gonzalez, da Unidade Especial de Direitos Humanos, realizou uma inspeção no terreno da empresa agropecuária San Antonio S.A., localizada na região do baixo Chaco, por uma denúncia de restrição ao direito de circulação dos índios em suas terras ancestrais. “Uma restrição que, em alguns casos, afetou até mesmo a vida”, explica Ireneo Téllez, advogado da ONG Terra Viva. Esta organização presta assistência aos indígenas e afirma que dentro dessas terras vivem dezenas de pessoas da etnia enxet em uma comunidade chamada Santa María. Carlos Reinfeld, administrador da empresa, nega sua existência e sustenta que as pessoas que estão ali são apenas os trabalhadores da fazenda.
O processo foi iniciado por causa de uma denúncia do ano passado, porque “poderiam estar sendo violados os direitos humanos dos povos indígenas estão no assentamento”, disse o promotor. “Poderia ser o crime de genocídio”, acrescentou.
Este e muitos outros casos fazem com que haja cada vez mais índios expulsos de suas terras. Uma grande parte deles muda para Assunção e acabam vivendo nas áreas mais pobres da cidade.
Pobreza, racismo e exclusão social
O pequeno riacho que corre ao lado do Cerro Poty, que deságua no rio Paraguai, está completamente cheio de lixo. Uma parte vem do aterro nas proximidades. As inundações arrastam desperdícios e quando a água desaparece, os resíduos permanecem. Outra parte é dos próprios moradores. Não há nenhuma coleta, ninguém vai para limpar. “Há muita contaminação”, lamenta Petrona, a representante da comunidade, apontando ao redor.
Os índios, quando chegam em Assunção, têm que enfrentar a falta de emprego, habitação e o racismo da maioria da sociedade. Ausencio Gómez é um indígena avá guarani e vive em Cerro Poty junto com sua esposa, María, e seus cinco filhos. Ele tem 42 anos e vive há 11 neste lugar. Chegou em Assunção porque teve um acidente de moto no qual quebrou uma perna e em Curuguaty, seu local de origem, não tinha como ser atendido. Atualmente trabalha reciclando lixo durante oito ou 10 horas por dia em troca de 40 mil guaranis, cerca de 23 reais. Percorre as ruas do centro da cidade empurrando um enorme carrinho cheio de papelão e plástico até não caber mais nada. Se deixar de sair um dia para reciclar não terá nada para vender e, portanto, nada para receber.
Em 1981, foi criado o Instituto Paraguaio do Indígena para “proteger os direitos dos povos indígenas”, nas palavras de Claudelina González, mas ela mesma reconhece que o
INDI tem apenas 68 funcionários “e pouca capacidade para atender as necessidades de todas as comunidades “.
Joaquín Domínguez, indígena da etnia mbyá guarani, está acampado há 15 dias na frente desta instituição reclamando “terras e educação” e é muito mais duro em sus críticas. “O INDI e o Governo não fazem nada, não querem saber nada dos nossos problemas”, diz ele. Não é o único que pensa assim. Com ele, há dezenas de pessoas dormindo sob lonas há semanas.
À exclusão social e falta de apoio institucional é preciso acrescentar que “há muitos moradores de Assunção que são muito racistas”, opina o antropólogo René Alfonso. “Sempre ouvimos frases como ‘são porcos ‘, ‘temos que matá-los’ ou ‘suas mulheres não podem ter mais filhos’, comenta.
Menores entre drogas e prostituição
O dia passa tranquilo no Cerro Poty. A família toma tereré (infusão tradicional de erva mate e água fria) na porta de sua casa enquanto algumas crianças correm descalças. Estão cercados por pobreza e lixo, mas o pior está fora dos limites das pequenas comunidades como esta.
“Contabilizamos 3.000 indígenas vivendo na rua entre Assunção, Curuguaty e Ciudad del Este onde estão expostos a drogas como a cola de sapateiro, que tira a fome, e à prostituição”, assegura o antropólogo René Alonso. Esta realidade afeta tanto a adultos quanto a menores, mas estes últimos são os mais vulneráveis.
“Há entre 200 e 300 menores indígenas nas ruas de Assunção”, explica Leonarda Duarte, educadora social no Centro Pedagógico e de aprendizagem Nemity de San Lorenzo. Ela também é indígena, da etnia aché guarani, e trabalha desde 2010 nesta instituição dependente da Secretaria Nacional da Infância e Adolescência. “Um dos fatores mais importantes para que os menores estejam nas ruas é a invasão da soja em suas comunidades”, afirma Leonarda. “Quando são expulsos de suas terras vão para as cidades. Procuram grandes cidades para conseguir sobreviver”, afirma.
Em uma área localizada em frente ao Hotel Bourbon de Assunção, um dos mais luxuosos da cidade, viviam até recentemente dezenas de menores indígenas. “Cheiravam cola de sapateiro e à noite as meninas eram prostituídas. Até 15 dias atrás havia menores por aqui”, assegura Leonarda notando várias latas de cola sintética espalhadas pela terra vermelha. Garrafas, cinzas de várias fogueiras e sacos plásticos usados para cheirar cola respaldam suas palavras. Nos últimos meses, o Estado recolheu 70 crianças desse lugar. Alguns tinham família, mas outros foram levados para albergues infantis ou quartéis militares, dependendo de sua idade.
No centro, onde trabalha Leonarda há sete crianças, todos da etnia mbyá guarani. Os menores estudam, jogam futebol ou passeiam pelas instalações construídas há cinco anos pela Agência de Cooperação Internacional da Corea (Koica). Todos eles, por enquanto, estão longe da miséria, das drogas, dos abusos sexuais e da prostituição. Mas não dá para saber se amanhã não voltarão novamente às ruas. As educadoras têm contratos apenas por um ano (renováveis), o centro tem um baixo orçamento e ninguém conserta as coisas que quebram.
Enquanto isso, as plantações de soja e fazendas de gado continuam se expandindo e expulsando os indígenas de suas comunidades. Muitos deles virão para Assunção. Os que tiverem melhor sorte poderão se assentar em lugares como Cerro Poty, os que não tiverem sorte, terão que sobreviver em qualquer canto.
Começa a anoitecer no Centro Pedagógico e de Aprendizagem Nemity e as crianças assistem absortas a um filme em uma TV antiga, que reproduz mal as cores. Enquanto Leonarda pensa em voz alta: “Durante mais de 500 anos tentaram que nos comportemos como eles. E se mudarmos isso e eles tentarem viver como nós?”.